Revivendo o Horror
A festa de fim de ano de Moretzville estava sendo bastante agradável.
Centenas de pessoas reunidas na praça da cidade conversando e aguardando o
início do grande show da banda Evanescence. Enquanto todos bebiam, brincavam ou
simplesmente andavam por todos os lados aparentemente sem um destino, ela havia
ficado a maior parte do tempo grudada ao pescoço de Kevin, seu namorado e
quando indagada sobre o motivo, a mesma respondera apenas que não pretendia
perdê-lo no meio da multidão.
Pensara se deveria estar ali. Se não teria sido melhor ficar em casa e
esperar a virada para ligar para sua irmã e desejar-lhe todas aquelas
baboseiras que todos desejam para seus familiares e amigos no início de todos
os anos. De fato, ela preferia estar em casa, de preferência com a irmã, mas
sabia os motivos pelos quais a companhia de sua irmã não fora possível naquela
noite. “Maldito plantão!” -exclamara em sua mente.
A banda subiu ao palco cerca de dez minutos antes da virada. Ainda
grudada no pescoço de Kevin, Jennifer cantara uma canção junto com o público
que vibrava com a doce voz da vocalista. Os fogos anunciaram a entrada do novo
ano e em seguida, o show continuara.
Ao final do show, Kevin, que morava há apenas um quarteirão da praça
despediu-se de Jennifer e fora para casa a pé, enquanto a garota que morava em
um outro bairro, tomou seu rumo dirigindo seu Honda Fit prateado modelo 2010.
No caminho, Jennifer se lamentava por não ter ouvido o conselho de sua irmã. “É
a festa de fim de ano, não terei tempo de sentir frio” - dissera a jovem de
vinte e três anos à irmã mais velha pouco antes de sair de casa. Durante o dia,
o clima tinha sido tão agradável que ela não imaginara que faria tanto frio na
madrugada.
Virando a esquina, Jennifer entrara em uma das rodovias menos
movimentadas da cidade. Apesar de escura e deserta, era a opção mais rápida
para se chegar em casa, já que a maioria dos motoristas tinha como preferência
a rodovia principal. Acelerando o motor, ela passara a correr a 130 km/h. Tudo
que via ao olhar pelas janelas eram árvores que pareciam vultos negros ao redor
da estrada.
Distraindo-se com o som de Lifehouse, que começara a tocar no DVD do
automóvel assim que fora ligado, Jennifer se viu outra vez pensando em sua
irmã. Era a primeira virada de ano que passara longe dela desde o trágico
acidente que tirou a vida de seus pais. Lembrara que dali a uma semana faria
onze anos do acidente. Teria então que se preparar psicologicamente para
encontrar todos os parentes chatos que só apareciam uma vez por ano na missa de
aniversário da tragédia. Era extremamente irritante para sua irmã e ela terem
que ouvir seus tios dizendo as mesmas coisas que diziam todos os anos. “Seus
pais eram ótimas pessoas”, “foi realmente uma tragédia o que aconteceu” – como
se ambas não soubessem de tudo isso. Balançou a cabeça afim de espantar aqueles
pensamentos que não lhe agradavam nenhum pouco, afinal, o que realmente
importava era que sua irmã havia feito de tudo nos últimos anos para suprir a
falta que os pais faziam, mesmo que as vezes o resultado não fosse tão
agradável assim.
Jennifer desperta de seus pensamentos quando avista a frente algo parado
no meio da rua. “Um cachorro?” – indagou a si mesma. Pensara em apenas desviar
e seguir seu caminho, mas optou por não fazer quando imaginou que o animal
pudesse estar ferido.Parou o carro e desceu, a fim de ajudar se preciso.
Caminhou na direção do animal e de uma certa distância confirmou que de fato
era um cachorro. Aproximou-se um pouco mais e só então pode ver uma das cenas
mais terríveis e cruéis vista por ela até então. Ao redor, o chão estava
coberto de sangue, o que era normal, considerando o fato de que havia um enorme
buraco na cabeça do animal. Em seguida, ela percebeu que o abdômen do mesmo
estava rasgado. Alguns órgãos estavam fora do cadáver, como se alguém tivesse
rasgado com os próprios dedos e arrancado as vísceras para fora. Horrorizada com
o que via diante dos seus olhos, Jennifer concluíra que o animal não fora
vítima de um atropelamento e sim de algum culto satânico. Enojada, virou-se e
correu em direção ao carro. Parou por um segundo para respirar, entrou no carro
e deu a partida.
Ainda enojada, Jennifer decidiu passar no Hospital Memorial de
Moretzville para visitar a irmã, já que ela odiava ficar em casa sozinha
durante a noite. Virou a esquina entrando numa rua bastante iluminada,
diferente da rodovia que transitava há alguns segundos atrás. O hospital logo
apareceu diante de si, um prédio grande e bem organizado. Percorreu mais alguns
metros e estacionou em uma das únicas vagas disponíveis. “Estacionamento
cheio?” – comentou consigo mesma pouco antes de caminhar em direção a entrada do
hospital.
Ao entrar no hospital o que mais chamou a atenção da garota fora uma
enorme árvore natalina localizada no canto esquerdo do ambiente. As luzes e os
inúmeros enfeites coloridos eram sem dúvidas encantadores. Jennifer ficou
alguns segundo olhando para ela até ouvir o choro de um bebê vindo do elevador
que ficava ao lado da árvore. Só então a jovem se deu conta de que o ambiente
estava lotado. As vinte e cinco cadeiras verdes da recepção estavam ocupadas,
além de haver três ou quatro pessoas de pé. “Por isso a garagem estava lotada”
- disse enquanto caminhava em direção ao balcão da recepção.
– Sasha!
– Só um minuto Jenn. – respondeu Sasha com um sorriso.
Sasha estava atendendo uma senhora com um bebê no colo, o mesmo que
roubou a atenção de Jennifer enquanto ela olhava para árvore momentos antes.
Sasha tinha pouco mais de vinte e quatro anos, cabelos compridos ondulados e
ruivos. As duas estavam cursando o quarto semestre de Publicidade e Propaganda
juntas e sempre que podiam, se encontravam para jogar conversa fora.
Jennifer começara a brincar com o bebê e de repente, viera em sua mente
a imagem do animal rasgado no meio da rodovia. Ela começara a tentar imaginar
como fizeram aquilo quando é trazida de volta por uma doce voz que dizia:
– Jenn! O que você está fazendo aqui?
– Eu vim lhe dar um abraço e te desejar um ótimo ano, maninha -
respondeu Jenn.
A mulher com os olhos verdes e cabelos longos e castanhos, ajeitados
perfeitamente em um rabo de cavalo abriu um sorriso e abraçou a garota.
– Tudo em dobro pra você, minha linda! Como foi sua...
A mulher é interrompida por uma voz da pequena caixa de som na parede do
hospital.
“Doutora Chambers! Comparecer a ala pediátrica imediatamente”.
Rebecca pega Jennifer pelo braço e a leva consigo para o elevador.
– Jenn, vá para meu consultório que eu vou ver o que aconteceu na ala
pediátrica, ok? – Jennifer balança a cabeça positivamente.
Assim que o elevador chega no segundo andar, Jennifer entra na primeira
porta à esquerda, enquanto Rebecca caminha rapidamente para o lado oposto. Ela
abre a porta no fim do corredor e ouve gritos vindo do andar de baixo.
Automaticamente, ela se vira em direção ao seu consultório e vê Jennifer saindo
dele e correndo em sua direção.
– O que está acontecendo? – pergunta.
– Eu iria ter perguntar a mesma coisa. – responde Jennifer.
Rebecca meio desorientada caminha de volta ao elevador.
– Vou ver o que está acontecendo. Se perguntarem por mim, diga que já
volto. Ok?
– Não! – responde Jennifer – Eu vou com você!
Rebecca balança a cabeça concordando e ambas esperam o elevador que não
chega. Os gritos aumentam e Jennifer sugere que irem pelas escadas. As duas
abrem a pequena porta ao lado do elevador e começam a descer enquanto o gritos
ficam cada vez mais alto.
Rebecca tenta imaginar o que pode estar acontecendo. Ela nunca ouvira
tamanho desespero vindo da sala de recepção. O som de um tiro faz com que as
paredes estremeçam e ambas aceleram o passo. Depois, um segundo, terceiro e um
quarto tiro. E então Rebecca já estava diante da porta.
A mulher abre a porta e vê pessoas correndo em direção à saída. Ela olha
ao redor e no canto, vê um jovem pálido com os olhos e cabelos negros encostado
em uma das paredes da sala. Seu semblante era o de uma pessoa extremamente
assustada, como se tivesse presenciado algum tipo de massacre ou coisa do tipo.
Um gemido de dor chamou sua atenção, era uma mulher sentada em uma das poucas
cadeiras que restara de pé. Sua mão ensanguentada estava sendo pressionada por
um homem moreno e alto que segurava uma Beretta em uma das mãos. Ambos, também
com semblante assustado. Um rastro de sangue próximo ao casal levara sua visão
até o local onde encontravam-se dois corpos caídos no chão. Ao redor, uma
enorme poça de sangue se formara e aumentava a cada segundo.
Horrorizada e confusa com a situação, Rebecca teve a mente invadida por
um turbilhão de pensamentos e sentimentos que não sentira há muitos anos.
Diante de tudo aquilo, ela não conseguia nada além de ficar imóvel. A mulher de
olhos verdes e pouco mais de trinta e três anos não conseguia falar ou pensar
em nada, por um instante tudo que havia ali era ela e toda aquela cena de
horror que ela trabalhara durante anos para retirar de sua mente.
– O que... – Jennifer respira – O que está acontecendo aqui? – ela diz
em um tom alto o suficiente para que os poucos presentes no ambiente ouvissem.
– Eles entraram e.... eles... – o garoto pálido suspira e abaixa a
cabeça - Eles tentaram me morder, foi horrível. Não tão horrível quanto... – o
garoto para de falar e começa a chorar desesperadamente.
– Quanto o que? – pergunta Rebecca de uma maneira extremamente
grosseira, completamente diferente do que ela costumava ser.
– Então, eles morderam essa moça e o marido...
– Eu tive que fazer... avisei que atiraria, mas eles continuaram a vir
pra cima. – interrompe o homem moreno que Rebeca vira segurando a Beretta.
Rebecca começou a caminhar pela sala em direção ao balcão onde Sasha, a
colega de faculdade da irmã costumava agendar as consultas.
– Moça, melhor ficar longe do balcão – disse o homem ainda pressionando
a mão da esposa.
Rebecca parou por um instante e encarou o homem que colocava a Beretta
no bolso de trás da bermuda jeans. Em seguida, olhou para Jenn que permanecia
imóvel, apenas seus olhos seguiam Rebecca à medida que a mesma movimentava-se.
Ela soltou um sorriso forçado a fim de passar tranquilidade a irmã e em seguida
continuou caminhando em direção ao balcão. A sala ficara em completo silêncio e
todos conseguem ouvir o som de algo sendo mastigado de uma maneira feroz
seguido de um gemido que não aparentava ser da mulher ferida. Centenas de
coisas começam a passar por suas cabeças. Rebecca não podia, não queria
relembrar tudo que viveu no passado.
A medida que a médica avança em direção ao balcão seu pensamento
retornara ao ano de 1998 e seus batimentos cardíacos aceleraram. Desejara
naquele momento que tudo aquilo fosse apenas um de seus pesadelos e que em
breve, seu noivo Owen ou até a própria Jennifer a acordaria e ela estaria
novamente em sua vida aparentemente normal tomando café da manhã com as duas
pessoas que mais lhe importavam no mundo. Seu corpo entrara automaticamente em
desespero e sem que percebera, lágrimas escorriam de seus olhos.
Aproximando-se do balcão, tudo que seus olhos viram fora o corpo de
barriga para cima completamente rasgado. Os cabelos ruivos entregaram
rapidamente a identidade do cadáver “Sasha!” – exclamou horrorizada. Os órgãos
que ainda restavam estavam completamente fora do corpo da universitária e em
pedaços mastigados. Seus olhos já não existiam, bem como o braço esquerdo e a
maior parte de suas pernas. O piso branco estava coberto pelo vermelho intenso
de seu sangue que não parava de escorrer de todo seu corpo, ou o que ainda
restara dele. Ao redor, três criaturas desfiguradas que aparentavam ser dois
homens e uma mulher se deliciavam com o braço que haviam arrancado da moça. Tal
cena não lhe deixou mais nenhuma dúvida. Todo o horror que Rebecca vivera há
quinze anos atrás voltara para assombrá-la e dessa vez não apenas em seus
pesadelos.