Resident Evil ~ Terror em Little River ATO 1


Chamado para a morte

O relógio digital sobre a mesa marcava dezessete horas mais cinco minutos em seus números verdes sobre o fundo preto. Samantha estava entediada. Na parede um outro relógio redondo marcava o mesmo horário, mas diferente daquele digital sobre a mesa, esse outro fazia um barulho infernal de tic-tac eterno, um som que rompia o silêncio daquele fim de tarde e que já a estressava mais do que o habitual. Era 4 de julho e a cidade estava vazia. Tudo colaborara para chegar a isso. Primeiro o fato dos desaparecimentos, vinte pessoas desaparecidas nos últimos três meses. Até mesmo uma equipe do FBI fora enviada para a cidade, investigaram o caso por uma semana e então simplesmente foram embora alegando apenas que iriam estudar os fatos e retornariam. Para a jovem policial aquilo era suspeito, por que os federais surgiriam e do nada simplesmente deixariam as coisas como estavam e partiriam? Algo estava mal contado, alguma coisa estava sendo escondida de todos a sete chaves. Mesmo assim ela ficava quieta, quando tentara expor suas ideias ao chefe de polícia do departamento quase fora demitida.
“Em que está pensando?” – dissera ele – “Por acaso está insinuando que os federais foram instigados a nos deixar e partir? Estamos em ano de eleições e precisamos de recursos que ainda não vieram, a última coisa que precisamos nesse momento é arrumar problemas com o governo! Apenas faça seu trabalho e deixe o resto com os responsáveis!”
O que dizer? Aquele velho rabugento era um pé no saco, sempre dando uma de sabe-tudo. A jovem tinha vontade de lhe arrancar o bigode grisalho com um alicate se pudesse. Para completar o feriado de 4 de julho estava chegando e todos os já assustados cidadãos da pequena cidade de setenta mil habitantes usaram aquilo como desculpa para fazerem as malas e partirem. Apenas os menos afortunados e uns poucos velhos tinham ficado, afinal, em Little River não haveriam comemoração, eles não tinham verbas nem motivos para isso, principalmente com tantos desaparecimentos sem solução. Felizmente aquele dia tedioso estava terminando. Em menos de uma hora ela seria substituída pelo oficial Johnson e poderia ir para casa. Passaria pela loja de conveniências apenas para comprar comida e ração para o gato, depois seus planos se resumiam a Chopin no CD Player e duas horas com sais de banho na banheira.
A fim de despertar da preguiça daquele dia chato a jovem levantou-se e foi até o banheiro lavar o rosto. Estava só o dia todo, aquela era uma pequena delegacia e nada naquela cidade acontecia para que se preocupasse. Até mesmo os desaparecimentos quando notificados não deram em nada, pois todo o destacamento de policiais, cerca de vinte homens e mulheres, mais centenas de voluntários haviam procurado e mesmo assim não haviam encontrado nada, nem pistas sobre o paradeiro das vítimas.
Samantha entrou no pequeno banheiro e deixou a porta aberta de forma que ouvisse caso alguém adentrasse a sala logo atrás de si. Desprendeu o distintivo do bolso da camisa de seda azul-marinho e o prendeu na cinta. Em seguida afrouxou o nó da pequena gravata e abriu a gola da camisa um pouco, respirando mais aliviada. Sempre se sentia sufocada naquelas roupas. Molhou as mãos e acertou alguns fios do cabelo que estavam soltos e lhe caíam sobre a testa. A jovem tinha cabelos castanhos lisos cortados acima dos ombros em um estilo bem francês, repicados para os lados e penteados da esquerda para a direita. Bateu de leve no rosto e encarou seus próprios olhos castanhos no espelho, imaginando se todo aquele stress não a envelheceria mais rápido. Tinha vinte e três anos e não tinha namorado. Considerando os babacas que as amigas namoravam, não sabia dizer se aquilo era um bom ou mal sinal.
Antes que começasse a pensar em coisas relacionadas a sentimentos seus pensamentos explodiram em uma nuvens de esquecimento ao levar um susto com o som do telefone tocando em sua mesa. Foi correndo até o mesmo e atendeu ao terceiro toque.
—Alô, delegacia? Alguém aí? Quem está aí? – gritava a voz do outro lado.
—Oficial Samantha falando, quem fala aí? Pode falar com mais calma, por favor?
—Até que enfim consegui sinal! – berrou a voz ao outro lado. Era uma voz masculina – Estou na floresta, ao sul da ponte de Woodland, preciso de ajuda urgente! Eles estão atrás de nós, Steve, ele… ele não conseguiu escapar, eles o pegaram! Estou fugindo pela estrada na caminhonete do Joe, ele está aqui, mas está mal, precisamos de ajuda, chame um médico, vou tentar entrar na cidade pela estrada da fazendo do Harry, estou quase na ponte, mas essas coisas correm tão rápido quanto um carro! Por favor, consiga ajuda!
—Que coisas? Do que está falando? Vou ver o que posso fazer imediatamente! – respondeu a policial em voz alta, claramente exaltada em resposta ao que ouvia. Samantha não queria pensar naquilo, mas em seu íntimo sentia que aquele caso tinha algo a ver com os recentes desaparecimentos, principalmente porque ela suspeitava que se alguém desaparecera sem deixar rastros, a chance de estar na floresta de Woodland era enorme e aquele homem estava justamente fugindo apavorado daquela floresta.
—Eles estão aqui! – berrou a voz ao telefone – Maldição! Como essas coisas puderam me alcançar? Estou a mais de 80km/h, eles estão tentando entrar! Me ajude! Me ajude!
O som que a policial ouvira em seguida fora o estrondo de tiros de alto calibre, e pelo que ela conhecia de armas provavelmente de uma escopeta. Quem atiraria com uma escopeta à queima-roupas estando ao volante? – pensou. Pior que isso, o que levaria alguém a atirar com uma arma de tão poderoso dano ao mesmo tempo em que dirigia? A jovem ficou chamando, mas não ouviu mais nenhuma resposta. Após o som dos tiros o som que viera fora muito pior, um barulho enorme que parecia ser o de um grande impacto, como se o veículo no qual o sujeito estava tivesse colidido de frente com uma árvore, pedra ou barranco na velocidade em que estava. Antes disso, porém, o grito do sujeito foi bastante claro. Se o sujeito que ligara não estrasse para a lista de desaparecidos, pelo menos não haviam dúvidas de que ele estaria na lista de baixas daquele estranho caso.
O relógio marcava dezessete horas e quinze minutos. Há exatos dez minutos a policial estava entediada e esperando pelo merecido descanso daquele fim de dia. No entanto, o que fazer agora? O chefe de polícia, o delegado Norman Berckley, estava com a família em Ohio. Assim como muitos outros viajara dias atrás para aproveitar o feriado fora daquela cidade. O que ela deveria fazer. Seus instintos de policial falaram antes de tudo. A mulher discou o número da casa de Johnson, o policial que a substituiria no plantão daquela noite e lhe explicou o que acabara de acontecer. Pediu-lhe que viesse o mais rápido possível e informou que iria investigar o ocorrido, deixando a delegacia trancada. Cada policial tinha sua própria chave e devido ao recente acontecimento ela decidira que não tinha escolhas a não ser ir imediatamente averiguar o que estava ocorrendo. Felizmente pelo tom de voz do outro policial, enquanto ela explicava os fatos ele já estava saindo de casa pra vir até onde a mesma se encontrava naquele momento.

***

A viatura policial arrancava a toda velocidade levantando poeira pela estrada de terra. Felizmente as estradas que circundavam a cidade de Little River eram todas bem cuidadas e um decreto municipal encarregava os fazendeiros locais a mantê-las em bom estado, pois afinal eram eles quem mais as usavam. O céu daquele fim de tarde estava escuro como noite. Não havia lua tampouco estrelas e o frio cortante começava a se destacar. Assim que desligara o telefone, Samantha vestira uma jaqueta de couro marrom que ganhara de presente de um amigo havia já alguns anos e enchendo o carro com todas as armas que conseguira saíra em disparada. Tinha poucas esperanças de encontrar alguém ainda com vida, mas esperava encontrar ao menos o responsável por todos aqueles desaparecimentos. Lembrava-se de que entre os desaparecidos estavam alguns amigos e conhecidos. E mesmo que não conhecesse nenhum, não conseguia deixar de pensar que todas aquelas pessoas tinham pais, mães, irmãos, amigos, muita gente que sentia falta deles. Se nem o FBI nem o governo fariam nada para ajudar, ela faria, mesmo que fosse sozinha.
Seguindo as últimas coordenadas que recebera a jovem seguira em direção à grande ponte que havia sobre o penhasco e que ligava as duas partes da floresta de Woodland e depois tomara a direção sul, descendo pela estrada para a região mais afastada e menos procurada pelos inúmeros caçadores da cidade. Haviam muitas lendas e superstições quanto àquela área e uma vez que todos aqueles desaparecimentos haviam começado, as crendices e boatos haviam aumentado ainda mais. Mas isso não importava para ela, Samantha crescera com um pai cético que acreditava apenas naquilo que via e que a educara da mesma forma. Para a jovem os medos desapareciam quando a verdade sobre qualquer coisa era revelada e por trás de qualquer coisa havia sempre uma fonte pessoal espalhando as notícias.
     Contudo, aquele começo de noite não a ajudava em nada. Assim que a estrada de terra acabara diante da velha viatura policial a jovem se vira forçada a descer e, se quisesse continuar, teria que fazer o restante do caminho a pé. A mulher sentiu um arrepio lhe correr pela espinha e antes que pensamentos mais aterrorizantes lhe acometessem a mente saiu do veículo num único salto. Lembrara-se do porquê havia vindo até ali e não poderia voltar atrás àquela altura do campeonato. Vestira um gorro de lã e prendera o comunicador ao ouvido esquerdo. Apanhara uma sacola de armas e a jogara nas costas. Não sabia o que estava procurando e portanto o melhor que poderia fazer era se prevenir, tinha dois rifles, duas escopetas e duas pistolas na sacola, além de muita munição. Nas mãos trazia a velha Beretta que ganhara do pai há muitos anos, quando o mesmo a ensinara a atirar. Desligara o giroflex da viatura e encarara a floresta diante de si e mesma sem desejar, tremera novamente.
Adentrara o lugar com a arma carregada em punhos. Não poderia ter escolhido noite pior. Sem lua nem estrelas a escuridão era predominante, era necessários carregar a arma com a mão direita enquanto a esquerda levava a lanterna e o peso da sacola em suas costas não lhe ajudava a manter o equilíbrio. Procurara observar ao longe, mas por mais que se esforçasse não via nada, sentia-se como uma cega caminhando em meio ao breu. Podia ouvir sua própria respiração ritmada, mas nada além disso. Lembrara-se então da ligação, do homem apavorado, de algo seguindo o veículo que arrancava à 80km/h, dos tiros e por fim, após o barulho dos gritos e o som ensurdecedor de uma batida muito forte, o silêncio sombrio e sinistro. Aquele mesmo silêncio que ela sentia naquele exato minuto. Samantha já havia caçado junto com o pai diversas vezes, inclusive a noite e em muitas noites escuras como aquela. Havia uma diferença daquela noite para todas as outras. O silêncio era tão profundo que chegava a ser fúnebre. Onde estariam as criaturas noturnas? Não ouvia nada, nenhum ruído, fosse de uma coruja, cobra ou qualquer pequeno marsupial ou felino silvestre. Forçou-se a molhar os lábios e engoliu em seco. Afinal de contas, estava sozinha – ou não?
Encostara em uma árvore e sem que percebesse seus olhos estavam arregalados. A tensão e o nervosismo lhe faziam querem enxergar mais, enxergar o que era impossível de ser visto, ser capaz de sentir além do que sua própria capacidade lhe permitia. Prendera a respiração, procurando aguçar sua audição o máximo de tempo que conseguira e tudo que percebera era que não sentia nada, não havia nada, apenas ela ali. Então o que acontecera com o homem do telefonema de antes? Não fora um trote e ela sabia disso, sentia isso. Mas naquele momento tudo que ela conseguia pensar era que estava sozinha e indefesa, apesar de todas as armas que carregava consigo, no meio de uma floresta escura e desconhecida, mesmo para ela que nascera e vivera toda sua vida naquela cidade.
Seus sentidos foram todos disparados em alerta quando do nada algo acontecera. Como o abrir das cortinas de uma peça de teatro. Ao longe, cerca de vinte metros, calculara ela, vira o facho de luz de uma lanterna brilhando em meio às árvores. Era um homem correndo, tinha certeza disso. A luz corria para longe e ela decidiu alcança-lo, era a única forma de obter algumas respostas e precisava disso naquele instante.
—Espere, quem está aí? – berrou ela – Aqui é da polícia, oficial Samantha, pare onde está, é uma ordem! – insistiu apontando com sua própria lanterna para onde o sujeito corria.
Por um breve segundo a luz da outra lanterna apagou e ela viu apenas a silhueta de um homem em pé que poderia ou não estar olhando para ela. Identifique-se ou terei de atirar! – berrou ela novamente. Então a luz da outra lanterna acendeu novamente e o barulho de passos longos e rápidos se fez ser ouvido pela assustada policial. O homem corria em sua direção. Com a lanterna sobre a arma, a jovem apontou contra o outro segurando a Beretta com as duas mãos. Iria gritar Identifique-se uma última vez e atiraria quando o sujeito, já há poucos metros dela, levantou as duas mãos para o alto em sinal de rendição.
—Sammy – disse ele – É você? Oh, graças a Deus, o que faz aqui?
—Johnny? – perguntou ela com tom de alívio em sua voz. Jones era amigo de infância de Samantha e era o único na cidade que ainda a chamava pelo apelido de infância, mesmo quando ela estava fardada e trabalhando na delegacia. Assim como Samantha, o jovem de vinte anos era caçador e como levara isso mais a sério que a mesma, tinha muito mais experiência que ela nesse assunto. Já próximos, a jovem percebera que ele carregava um rifle consigo, mas não tinha nenhuma mochila com outras armas ou munição.
—O que faz aqui? – perguntou ela – Recebi uma ligação e vim investigar, mas esse lugar está, como eu posso dizer, diferente, estranho. Não consegui sentir nada, nem a presença de ninguém, você é o primeiro que vejo há um bom tempo sozinha aqui já.
—Vim caçar com Luka, mas algo apareceu, nos atacou e nos separamos. Não sei onde ele está ou mesmo se está bem. Perdi o equipamento que trazia e estou fugindo há mais de duas horas. Por sorte essas criaturas aparentemente não pensam, o que nos dá alguma vantagem, mas mesmo assim ainda são muito perigosos, nunca vi um animal com tamanhas capacidades de predador, é como se tivessem olfato e audição perfeitos e sua visão noturna é quase incomparável. Precisamos dar o fora daqui o quanto antes.
—Que criaturas são essas, do que está falando? – perguntou a mulher, nervosa.
—Eu não sei, nunca vi nada assim antes. Precisamos ir até a cabana de caça, lembra-se dela? Nossos pais já nos levaram lá quando éramos crianças, tem algumas armas lá e se eu não estou enganado um rádio de baixa frequência também. Depois podemos ir até a estrada, minha caminhonete está lá em algum lugar. Podemos fugir logo daqui antes que seja tarde demais.
Samantha explicara sobre a ligação e que se o amigo estivesse correto, ali não era mais um lugar seguro para se ficar. Revelara as armas que carregava e dera uma das escopetas ao outro, bem como munição para as armas. Lembrara que tinha o rádio da patrulha, mas Jones negara a proposta de voltarem por aquele caminho, pois era a trilha das criaturas de que ele falava. Sem querer perder tempo com discussões a policial concordara em seguirem até a cabana, na pior das hipóteses aquele lugar lhes serviria ao menos de abrigo caso precisassem pernoitar e fugir pela manhã. Os dois se puseram a correr pelo meio da mata e das árvores. Por sorte o traje de policial da mulher incluía botas e calça de tecido grosso que muito ajudava na corrida em meio à folhas, terra e pedras. Enquanto corriam Jones começou a explicar o pouco que vira das já mencionadas criaturas. Segundo ele dissera logo no início – Você não vai acreditar, mas por favor, me escute. Dissera que em meio à escuridão da floresta naquele fim de tarde, pouco pudera ver dos predadores que haviam surgido entre ele e o amigo com quem estava, mas que fora o bastante para temê-los e quase ficar travado onde estava. Os “monstros”, segundo dizia, tinham cerca de dois metros e meio de altura, eram muitos altos. Tinham olhos verdes enormes e com pupilas espirais, como os olhos de crocodilos e outros répteis. Segundo percebera tinha escamas pelas costas e braços e a barriga parecia ser protegida por uma pele clara, como a dos sapos. Possuía braços longos como os gorilas, braços que desciam dos ombros até quase se encontrarem com o chão e o mais terrível de tudo, seus membros dianteiros estavam armados com garras enormes, grandes e afiadas com o que pensara ser mais de quinze centímetros.
Samantha ficara tentando imaginar como poderia ser tal criatura e sua mente se dividia entre a descrença nas palavras do amigo e a possibilidade de tal monstro realmente existir. Em certo momento, já próximos da cabana, o amigo que corria na frente parou abruptamente e lhe pediu que fizesse o mesmo. Pediu que ela olhasse por entre as folhas para a porta do pequeno chalé feito de madeira pelos próprios caçadores há muitos anos atrás. Segundo ele um dos monstros estava lá, parado em pé de frente para a porta, aparentemente investigando o interior do local. A mulher se forçou a enxergar em meio ao breu que consumia sua visão e embora não visse claramente algo como o que lhe fora antes descrito, era bem visível que havia na entrada algo mais alto que a batente. Instintivamente a mulher guardou a Beretta no coldre da calça e sacou um dos rifles que tinha na sacola de armas nas costas. Jones lhe sussurrou no mesmo instante que não atirasse, pois haviam outros e ela simplesmente lhes chamaria atenção para o local onde os dois estavam. A mulher assentiu, mas aproveitou-se da mira telescópica para observar o inimigo mais de perto. Era mais terrível do que ela imaginara e mesmo não o vendo completamente pela ausência de luz, o pouco que vira a fizera tremer como uma criança diante de um cão raivoso e gigantesco.
—Se esqueceu de mencionar a boca enorme e a quantidade de dentes afiados – disse ela.
—Temos que chegar lá. Essas criaturas não sabem como abrir e entrar, mas nós sabemos e ficaremos protegidos. Aqui fora vai ser uma questão de tempo até que nos descubram.
—Tenho uma ideia, mas vamos ter que agir juntos e rápido. Vou atrair a atenção deles, corra e abra a porta, entre e quando eu for para lá, esteja pronto para fechar assim que eu saltar para dentro. Não consigo pensar em outra opção – disse a mulher, gaguejando.
—Não posso permitir isso – respondeu o sujeito – Você é uma mulher, eu os distraio e você vai, se apenas um de nós escapar, é melhor que seja você… Tome – continuou o rapaz lhe entregando as chaves da caminhonete – Estacionei na estrada ao sudeste, a pouco mais que dois quilômetros daqui, se eu não conseguir, assim que puder, fuja para lá e procure por ajuda. Se alguma dessas coisas for para a cidade, ninguém lá estará seguro.
—Falou bonito, Romeu – respondeu a mulher, procurando mostrar-se autoritária e também mais séria em meio a escuridão que impedia que mesmo os mais simples traços de seus rostos pudessem ser vistos – Mas eu sou a autoridade aqui. Além disso, você é mais rápido e eu estou com uma sacola pesada. Você corre e abre a porta e me espera, quando eu for, me dê cobertura.
O caçador tentou argumentar, mas era impossível contradizer as ordens de Samantha quando ela falava como oficial. Ambos tremiam e a jovem só esperava não cometer erros enquanto dava cobertura ao amigo. Respirou fundo e fixou o olhar na mira telescópica da arma.
—Assim que eu começar, corra sem parar – disse ela.
O primeiro disparo fora perfeito, certeiro. Assim como esperado pela jovem, o projétil atingira o olho da criatura e dessa forma, o cérebro. O monstro tombou quase em frente à porta. Agora! – disse ela e o amigo se pôs em disparada. Estavam a cerca de vinte metros da casa. Uma outra criatura surgiu no telhado e fora igualmente alvejado, contudo, dessa vez o tiro lhe atingira em alguma parte do abdômen e o monstro aparentemente tombara de joelhos, mas não abatido. Um novo inimigo surgira por detrás da casa e Jones ficara entre este e a atiradora. Samantha pensara em gritar para que o mesmo se abaixasse, mas o grito provavelmente atrairia a atenção para onde ela estava e o que faria se todos os monstros decidissem correr em sua direção? Era fato que não conseguiria derrubar a todos. Em um momento de reflexo e susto a jovem optara pela escolha mais difícil e mais fácil de ser executada. Sem pensar duas vezes a mesma atirou por sobre o ombro do amigo, fazendo com que o projetil zunisse a poucos centímetros de sua cabeça atingindo a criatura logo à frente, que caiu, ao que lhe parecia, morta. Jones chegara à porta e a abrira imediatamente, entrando sem sequer olhar para trás. Samantha sequer esperou por um convite. Jogando o rifle nas costas a mesma saltou de onde estava deitada no chão para se colocar a correr naquela mesma direção para onde o outro fora.
Para sua infelicidade a sacola de armas se enroscara em um galho no chão e ela fora literalmente derrubada de sua “largada”. Os olhos da jovem se arregalaram quando ela tentou puxar a sacola e a mesma não se desprendia, e o que era ainda pior, a prendia ao chão onde estivera. A criatura que a mesma alvejara sobre o telhado saltara para o chão e ela pode sentir os olhos do predador a lhe escolher como alvo. Uma vez mais sem tempo para tomar decisões a jovem soltou a fivela que prendia a alça da sacola ao corpo e deixando ali todas as armas que tinha consigo levantou-se já correndo na direção do chalé. O monstro, por sua vez, começara a correr de encontro a ela que atirava com a única arma que lhe restara, a Beretta que estava no coldre da calça. Seus tiros, no entanto, pareciam não fazer efeito. O que poderia ela fazer com uma pistola quando um tiro de rifle ainda deixara a criatura em pé? Para sua sorte o companheiro começara a atirar contra as costas do inimigo que se colocara entre eles e isso lhe dera uma fração de segundo para realizar um ato heroico. Parando por um breve momento a mulher mirara com a Beretta no olho do monstro, o que lhe parecia ser o único ponto realmente vulnerável para lhes ferir. O disparo foi novamente certeiro, felizmente Samantha começara a atirar bem cedo e tinha ótima pontaria. Ferida, a criatura hesitou por um momento levando uma das enormes garras ao olho e a policial aproveitou esse instante para passar correndo por ela.
Infelizmente para a jovem, a criatura, talvez furiosa pelo ferimento ou simplesmente acuada diante da morte possível, atacara-a enquanto ela passava e um golpe quase certeiro da garra lhe fizera um enorme corte sobre a coxa esquerda. Samantha continuou a correr, sentia que estava em estado de choque e a dor somente lhe afligiria mais tarde. Mancando a mulher entrou para a cabana com a ajuda do amigo que lhe puxara com força usando uma das mãos enquanto atirava com a outra. Dentro do pequeno cubo de madeira que era aquela cabana, ambos se puderam a trancafiar a porta e as duas janelas. Logo sentiam-se totalmente lacrados do lado de dentro ao mesmo tempo que o silêncio dominara o lado de fora. Havia uma mesa no centro com quatro cadeiras, tudo feito em carpintaria e em bom estado. Sentaram-se ali se encarando, ambos claramente esgotados e amedrontados.
Esperaram alguns minutos até que recuperaram o fôlego e então Jones foi averiguar a extensão do dano na perna da moça. Foi preciso cortar a calça e a jovem ficou com uma perna exposta da coxa para baixo. O corte tinha mais de dez centímetros e era profundo. Uma decisão muito difícil precisava ser tomada, mas Samantha optou por ser forte. Não havia naquele lugar qualquer agulha ou linha para costurar o ferimento que sangrava. Naquele ritmo perderia sangue demais e poderia contrair uma infecção, isso se a garra do monstro já não lhe tivesse infectado com alguma bactéria que ela desconhecesse. Havia uma única lamparina a gás que Jones havia acendido logo que lacraram as janelas e a porta do lugar. Não dava pra saber quanto tempo duraria aquele pequenino facho de luz, mas ambos torciam para não ficar por ali por muito tempo. Enfiando a mão em sua bota, Samantha retirou uma faca de caçador que sempre levava consigo, um conselho de seu pai que jamais se esquecera. Quando ficar sem nada, sem nenhuma outra arma e sem suprimentos nem equipamentos, lembre-se, minha filha: essa faca pode significar sua salvação. Agora ela se lembrava das palavras e chegara à conclusão de que ele tinha razão.
Jones compreendeu o que a mulher tinha em mente logo de imediato e a única pergunta que fez foi se ela tinha certeza. Samantha apenas disse que sim, não tinha outras opções, o corte precisava ser fechado e o sangramento estancado, ela precisava estar em condições de sair dali, não pretendia se tornar um atraso ou incômodo para o outro. O rapaz então retirou a camisa que usava e a enrolou, em seguida disse para a mulher que mordesse com força e que não importava o que acontecesse, que não gritasse. Não sabiam quantas outras criaturas como aquelas ainda estavam lá fora e não achava que tê-las todas rodeando a cabana fosse um boa ideia se pretendiam sair logo dali. A jovem sabia que aquilo seria seu desafio mais difícil, mas não via alternativas e se entregou ao que devia ser feito. Os minutos seguintes foram os mais dolorosos e terríveis de toda a vida da jovem policial. Jones aquecera a faca de caça da mulher na chama da lamparina até a lâmina da mesma ficar alaranjada e a pedido da própria Samantha amarrara suas mãos para trás na cadeira e a amordaçara com a camisa. Os olhos da jovem avermelharam logo ao primeiro toque e ela chorou, chorou como uma criança. O rapaz não a encarou em nenhum momento, sabia o que devia ser feito e não podia se comover. Precisava ser forte pela amiga. Foram mais de nove queimaduras até o ferimento estar fechado e o sangue estancado. Com sorte não haveria nenhuma infecção e se houve a cauterização deveria cuidar disso no momento. A jovem havia desmaiado antes da metade do processo. Melhor assim – pensara o rapaz.
Pouco mais de uma hora depois a mulher acordou. Não havia espelho, mas ela sabia que estava acabada. Desmaiara de tanta dor. Olhara para a perna cuja pele agora estava deformada e pensara que se sobrevivesse aquilo precisaria de uma plástica que lhe custaria todas suas economias. O amigo lhe deu a camisa para que ela limpasse o rosto, lamentou que só tivessem aquilo, mas explicou que ao contrário do que esperava, a cabana estava abandonada. Ao que parecia ninguém ia até ali há anos, tudo estava deixado para apodrecer havia muito tempo. Samantha ficou observando o rapaz, fazia anos que não se viam e ele, assim como ela, crescera bastante. O mesmo estava apenas com o colete de caçador que usa sobre a camisa quando se encontraram, era uma peça aberta na frente e com vários bolsos onde guardavam munições e iscas. Pela abertura ela via o peito e abdômen definidos do jovem, nunca imaginara que seu amigo fosse malhar um dia, tudo que se lembrava dele era das brincadeiras e discussões tempos atrás quando ainda faziam o ginásio juntos na escola. Uma parte da camisa havia sido cortada com a faca de caça e enrolada na perna da jovem, onde o corte havia sido cauterizado.
Samantha levantou-se e apanhou a Beretta sobre a mesa. Checou a munição e olhou na direção da porta. Antes que dissesse algo, Jones interveio:
—Não está pensando no que eu estou pensando que está pensando, não é?
—Não podemos ficar aqui – respondeu a mulher – Essas criaturas podem ter chegado até a cidade, meu pai e meu irmão estão lá. Além disso, precisamos pegar as armas de volta, não temos nenhuma chance ficando encurralados aqui que nem ratos em um buraco na parede.
—Mas sua perna ainda não se recuperou e nem sabemos quantas dessas criaturas ainda podem estar por aí, o que podemos fazer contra eles? Você viu o quanto são resistentes…
—Eu posso aguentar a dor e assim que pegarmos a sacola com as armas corremos para sua caminhonete. Se dermos sorte chegamos até ela e fugimos antes que nos alcancem. Se o homem que me ligou tiver dito a verdade essas criaturas podem alcançar um veículo a mais de 80km/h, mas não podemos simplesmente ficar aqui parados, precisamos arriscar.
—Isso é loucura, você sabe, não é? O mais provável é que morramos tentando.
—Então irei morrer tentando salvar as pessoas que jurei proteger, principalmente minha família – respondeu a jovem com os olhos castanhos carregados de fúria.
Jones respondeu com um aceno de cabeça, mas com os olhos mirando o chão. Sabia que não iria adiantar argumentar com a amiga, ou melhor, com a policial. Se recusasse a acompanha-la, a mesma provavelmente iria sozinha. As chances dela morrer sozinha eram maiores, assim com as chances dele sair daquela cabana e escapar sozinho também eram. Pelo que conhecia daqueles monstros, tinha quase certeza de que morreriam naquela fuga. Em seu íntimo, torcia para que todos estivessem mortos ou que os que tivessem restado estivessem longe dali.
Samantha explicara em seguida que ao sul daquele pequeno chalé havia uma longa descida que levava em direção à estrada. Haviam também inúmeros eucaliptos nessa área e estavam plantados todos muito próximos, o que significava que se descessem correndo entre as árvores teriam uma chance, pois as criaturas eram grandes demais para passar por certos espaços e essa era a vantagem deles. O caçador pensou na ideia por um momento e chegou à conclusão de que a mulher tinha razão, havia uma chance dependendo de quantos fossem os predadores que estivessem em seu encalço.
Então a jovem abriu uma minúscula fresta na porta e espiou para fora. Ficou ali dois minutos, não ouvira nada. Não havia nada do lado de fora senão a friagem cortante daquela noite, que ela sentira como uma facada ao ser atingida na perna exposta sem a calça e com a ferida ainda a pouco cauterizada. Respirou fundo e prendeu o ar nos pulmões. Apanhou a escopeta que dera para o amigo antes e lhe deixara com o rifle que tinha. A Beretta havia sido colocado no coldre na perna da calça de novo. Por sorte o coldre ficava na perna que não havia sido atingida.
—Ouça bem – disse ela – Me lembro de onde a sacola caiu, está presa em alguns galhos. Irei correr até ela e removê-la e volto correndo na direção da estrada. Me dê cobertura e assim que ver que estou voltando assuma a frente e corra o máximo que puder – e então lhe devolvera as chaves da caminhonete que ele havia lhe dado antes – Quando chegar lá dê a partida o mais rápido possível, vou saltar na traseira para impedir que qualquer daquelas coisas se pendure em nós enquanto partimos, está bem?
—Eu… - começou a dizer o rapaz quando a mulher saíra em disparada cabana afora.
Jones saiu em seguida. Ficou ao lado da cabana observando a mulher no escuro. Pouco se podia ver dela mesmo há não muitos metros de distância entre eles, mas ainda assim o uniforme de polícia azul era destacável na escuridão da noite. Samantha chegara até a sacola caída no chão e fora imediatamente alcançar a fivela da alça da mesma. Seus piores pesadelos tornaram-se reais naquele exato instante. Uma garra enorme, com unhas negras afiadas e longas foram mais rápidas. Desviando o olhar da pata que tocara a sacola primeiro que ela mesma a mulher vira o monstro. Dessa vez o animal fora visto de perto, o que acontecera em menos de dois segundos ficara congelado na mente da mulher. Seu olhar havia subido desde a garra pelo braço para a cabeça do ser que a observava a poucos centímetros de distância. Então a criatura emitiu um som que se parecia com o coaxar dos sapos. Assim como os sapos seu peito inflou-se e depois contraiu-se nesse momento. Samantha não tinha tempo para ponderar hipóteses, atirou imediatamente a queima-roupa com a escopeta que tinha em mãos. O animal cambaleou para trás, mas não caiu. A jovem atirou novamente e o bicho ajoelhou-se, um terceiro tiro na cabeça o fez deitar-se, mas suas garras prendiam agora a sacola de armas. A policial se via assustada demais para tentar remover as armas do monstro, por toda parte só havia a mais profunda escuridão e ela temia que outros monstros como aquele pudessem estar se aproximando.
Virando-se a mulher voltou correndo para junto do amigo que a esperava.
—Perdemos as armas – disse ela, ofegante – Havia um… monstro, eu atirei nele e ele caiu sobre a sacola, é impossível tirar de lá, não podemos perder tempo aqui…
—Sammy, cuidado! – gritou o amigo apontando na direção da mesma com o rifle. Ela sabia o que aquilo significava, mas precisava ver e saber se podia fazer algo. Virara-se para trás e o mesmo monstro em que atirara três vezes estava novamente de pé, mas não tão próximo. O mesmo estava sobre as armas, aparentemente se recuperando. A garota chegara à conclusão de que não tinham chances, aquela era a hora de fugir.
—Corra! – disse ela em voz alta, evitando gritar e chamar a atenção de outros – Corra, precisamos sair daqui!
Ambos viraram correndo pela parte de trás da cabana e desceram pela encosta. Não ouviam nada nem olhavam para trás para ver se algo os seguia. Jones corria fazendo semi círculos por entre as árvores e a mulher o seguia. Em certo ponto a mesma escorregou em um monte de folhas molhadas pelo orvalho da noite e caiu. Descera rolando por mais de dez metros e caíra em uma ribanceira, batendo com as costas em uma grande pedra no final. Estava deitada de costas em um córrego e suas roupas estavam molhadas, assim como seu cabelo. Estava também suja de folhas e lama. Quando o companheiro chegou ela já estava em pé. Felizmente não havia quebrada nada e não se ferira além de arranhões. A escopeta ainda continuava em suas mãos, pois ela não largara a arma em nenhuma momento. Batera a mão no coldre da calça e uma onda de alívio lhe passara quando sentira que a arma que ganhara do pai continuava ali também. Vamos – disse e dali pegaram a estrada logo abaixo.
A caminhonete de Jones estava estacionada no acostamento. Não haviam muitas coisas em sua carroceria e a mulher saltou para ela, dizendo que se alguma das criaturas surgisse ela iria impedir que este pegasse carona com eles. O jovem não questionou a ordem da “oficial”, correndo imediatamente para a cabine e dando partida. O veículo saiu em disparada pela estrada e em sua carroceria Samantha pensava que teria de retornar ali com um destacamento policial para investigarem a floresta e também para reaver a viatura policial que havia sido deixada para trás. O vento frio da caminhonete em alta velocidade amortecia a dor na perna e ela se sentia exausta e frustrada. Não descobrira nada sobre os desaparecimentos e quase morrera. Pior que isso, encontrara criaturas totalmente desconhecidas e estranhas, mais vorazes e mortais que qualquer animal que já tivesse ouvido falar em toda sua vida. A bela mulher passou a mão pelo rosto retirando um pouco da terra e sujeira que lhe incomodavam. Os cabelos sujos e molhados voavam com o vento. Como estaria a cidade? – pensou ela. Teriam aqueles monstros chegado até lá também? Não tinha certeza, mas tinha medo de que o pior pudesse estar acontecendo ou mesmo já ter acontecido.
Samantha estava quase cochilando quando seus olhos castanhos arregalaram vidrados. Ao longe, há mais de duzentos metros ela vira o predador. Era outra daquelas criaturas, estava correndo em meio à estrada, seguindo-os. A jovem bateu com força contra o vidro da janela traseira da cabine e berrou para o Jones acelerasse. Não foi preciso dizer o motivo. O motorista arrancou com força e ela quase perdeu o equilíbrio com a potência da caminhonete 4x4 em sua total velocidade. Mesmo assim o monstro continuava avançando, aquele ser cruel e mortal cada vez mais próximo. Embora soubesse que não teria muitas chances de acerto, a mulher apanhou o rifle de Jones que tinha consigo e tentou mirar, atirando tanto quanto podia. O predador não se esquivara, era um monstro sem inteligência, não tinha noção do estrago que ela pretendia. Ainda assim nenhum tiro o atingira, a caminhonete balançava demais e ela não conseguia fixar a mira com o sacolejar, os tiros tinham todos variado e perdido o alvo. Quando o monstro estava a menos de dez metros Samantha sacou a Beretta, sabia que naquela distância era impossível acertar com a escopeta também. Mas mesmo com a pistola parecia que acertar de cima de uma caminhonete em movimento era um desafio grande mesmo para uma atiradora como ela. A jovem batera novamente no vidro da janela traseira da cabine e berrara para que Jones se preparasse, pois a criatura os estava alcançando rapidamente e logo estaria encima deles.
Quando o monstro estava a menos de dois metros da traseira da caminhonete Samantha percebera em meio à escuridão as manchas de sangue no peito do mesmo bem como as marcas de queimadura causadas pelas escopeta alguns minutos atrás. Era o mesmo monstro que ela acertara sobre a sacola de armas e vendo-o agora na estrada se notava que era maior que os outros em que atirara antes. A criatura deu um salto e a jovem sacou e disparou com a escopeta ao mesmo tempo. O disparo acertou o monstro em pleno ar, mas mesmo assim ele ainda caiu agarrado à beirada da parte traseira do veículo e começara a subir. Samantha encarara os olhos verdes enormes da criatura a lhe encarar, claramente injetados por fúria e ódio sem limites. A besta escancarara a boca com duas fileiras de dentes brilhantes e afiados e soltara uma espécie de uivo, um zunido agudo que lembrava muito a garota do coaxar dos sapos, mas muito mais estridente que o dos bichos normais. A baba da criatura acertou a perna exposta da mulher que sentiu repulsa, embora não tivesse tempo para se preocupar com isso naquela situação.
Samantha sem pensar atirou com a escopeta contra o olho da criatura que parecia ter se ferido dessa vez, mas mesmo assim saltou para dentro da carroceria com ela. Instintivamente a mulher se virou e em um ato completamente ousado e sem pensar a mesma se lançou pela lateral do veículo em movimento e entrou na cabine pela janela do passageiro, que felizmente estava aberta nesse momento. Jones a encarou a mulher começou a berrar, chorando.
—Ele… ele… - ela tentava dizer sem conseguir soltar as palavras devido aos soluços e a falta de ar - …ele está aqui, na caminhonete, eu não consegui detê-lo!
Não foi preciso que ela dissesse muito mais, um estrondo forte no teto fez com que ambos olhassem para cima ao mesmo tempo. As marcas de quatro cortes se fizeram aparecer e isso era uma sinal ruim, sinal de que a criatura estava acima deles, acima de suas cabeças.
Antes mesmo que tivessem tempo para assimilar o que acontecia o vidro do para-brisa do lado da mulher            trincou-se fazendo o perfeito desenho de uma enorme teia de aranha diante dos olhos da policial. O rapaz lutava com o volante par manter o controle da caminhonete.
—Eu tive uma ideia!!! – gritou ele.
—O quê?! – a jovem tentava entender, sem tempo para ficar pensando.
—Eu tive uma ideia, é a nossa única chance, você tem que saltar!!! – ele berrou novamente.
—Do que está falando? O que vai fazer?
—Você tem que saltar, vai entender depois, salte!!! – gritou o rapaz enquanto empurrava a mulher contra a porta. Samantha não contestou, o amigo segurava a direção do veículo com a mão esquerda ao passo que a espremia contra a porta com a direita. Apavorada e incapaz de pensar ou reagir a mesma simplesmente destravou o pino de segurança e se deixou ser lançada para fora. Só então deu-se conta de que a caminhonete se deslocava a mais de 80km/h naquele momento. Felizmente ela não caíra no chão de imediato. Sentira seu corpo leve voando pelo ar, talvez levada pelo vácuo e então chocou-se contra uma superfície macia. A verdade era que fora arremessada por sobre o acostamento e caíra em um monte de arbustos no início da floresta escura. Depois de sentir seu corpo rolar por alguns metros a mulher enfim parou de barriga para cima no chão de folhas e terra. Não conseguia se mexer e isso a apavorava ainda mais.
Nenhuma parte de seu corpo reagia, não sentia suas pernas, nem os braços, nem mesmo os dedos de suas mãos ou seus lábios respondiam aos seus comandos. Era incapaz de abrir ou fechar os olhos além do quanto já estavam entreabertos. Não sentia sua respiração. Por um momento Samantha imaginou que estivesse morrendo. O que teria acontecido? E Jones, o que ele tinha feito? Nenhuma resposta. Por fim a policial desistiu de lutar contra a falta de sentidos, tudo ficou ainda mais escuro que aquela noite de trevas e pesadelos e ela desmaiou.
Os olhos de Samantha abriram-se devagar. Fora difícil, primeiro piscando de leve, devagar, depois abrindo lentamente e se ferimento mesmo com a escuridão que envolvia todas as coisas. Seu corpo todo doía, mas ao menos ela sentia as dores, isso era um bom sinal, pelo menos do ponto de vista de que se sentia dores era sinal de que estava viva. Com grande esforço a mulher virou-se de lado, sentia a perna exposta, onde a barra da calça precisara ser cortada algum tempo atrás, arder como se estivesse ferroada por farpas ou espinhos no chão sujo de terra. Ficou de joelhos, o corpo caído para frente, a cabeça no chão sobre os braços cruzados. Estava imunda e machucada, muita machucada. Subiu pela encosta do acostamento engatinhando e quando chegara a menos de um metro da estrada de terra batida deitou o corpo no chão. Algo ao longe lhe chamou a atenção e ela de súbito despertou. Levantou o olhar e viu luzes que se aproximavam. Luzes vermelhas. Sem saber de onde tirara forças para tal a mulher se ajoelhou, depois gemendo e cheia de dores levantou-se em pé, quase caindo, mas em pé, à margem da estrada. As luzes chegaram mais e mais perto. E então pararam.
—Samantha! – gritou uma voz, uma voz conhecida – Meu deus, o que houve com você?
Então a mulher finalmente o reconheceu. Johnson, o policial que a substituiria no turno daquela noite na delegacia. O mesmo correu de encontro a ela e a abraçou, mesmo no estado em que ela se encontrava. A mulher sorriu e então chorou e então o abraçou de volta também. Johnson era dois anos mais velho que ela e filho de um carpinteiro da cidade. Assim como ela o mesmo também nascera e fora criado em Little River e ambos conheciam-se desde a infância.
—Eu saí e vim atrás de você depois que comecei a te ligar e você não respondia – disse ele – Você não vai acreditar, a cidade… a cidade está diferente, está um inferno. Literalmente um inferno. Não sei o que fazer, não sabia o que fazer e não consegui entrar em contato com os outros, por isso deixei tudo e vim atrás de você – ele parecia perturbado e Samantha não sabia se era pelo que dizia ou por vê-la como ela estava, mas sentia que as criaturas que a haviam atacado com certeza haviam chegado ao centro urbano de Little River – O que houve?
O outro policial ajudou a mulher e entrar e após a mesma estar acomodada no banco do passageiro o veículo voltou a se mover. Samantha explicou tudo pelo qual havia passado, desde o início até o momento em que desacordara. Olhou para o relógio da viatura e viu que marcava meia-noite e meia, haviam se passado poucas horas. O homem ao seu lado tentava entender o que ela queria dizer com monstros e assimilar as informações.
—Aqueles monstros, eles chegaram à cidade, não foi? – perguntou ela.
—Monstros? Eu acho que é muito pior…
Johnson ia começar a falar quando a mulher lhe pediu que parasse o carro. Estavam sobre a ponte de Woodland, o mesmo lugar por onde ela havia passado algumas horas atrás. Então ela desceu correndo do veículo e foi até a lateral da ponte, parando bem na beirada olhando para baixo. A ponte era toda de madeira e tinha cerca de vinte metros de comprimento. Era reforçada com metal, pregos e concreto e abaixo dela havia o penhasco de Woodland, por onde um rio longo e profundo serpenteava. Os olhos da mulher se encheram de lágrimas quando ela viu o que suspeitara no momento em que se aproximavam. Por um enorme buraco na madeira da proteção lateral, feito com certeza por um veículo de grande porte era possível se ver logo abaixo a caminhonete 4x4 de Jones. Então era esse o plano. Se a criatura não ia deixá-los, ele iria lançá-la no penhasco juntamente com o veículo que dirigia. Teria sido capaz de saltar antes da caminhonete se espatifar contra a proteção? – pensou a mulher. Esperava que sim.
—O que foi? – perguntou o policial se aproximando da mesma. Não foi preciso uma resposta para a questão. Ele mesmo vira a caminhonete logo abaixo.
—Estava com você? – perguntou o sujeito sem encará-la.
—Sim, mas não sei o que aconteceu, não sei o que ele fez. Espero que tenha conseguido.
—Precisamos ir, precisam de nossa ajuda na cidade. Acredite, as pessoas da cidade irão precisar de toda ajuda possível.
—Está bem – respondeu ela, suspirando e tentando se recompor – Vamos logo, vou precisar encontrar um lugar para me lavar e mudar de roupa, não estou em condições de ajudar ninguém assim. Pode me contar o que está acontecendo no caminho.
—Está bem, espero que ainda encontremos um lugar onde possa se arrumar. Vou lhe dizer tudo, espero que esteja preparada, não são notícias boas e nem fáceis.
—Acho que aguento qualquer coisa, precisamos fazer o que estiver ao nosso alcance.
Ambos entraram novamente na viatura policial e seguiram rumo à cidade novamente.