Mergulhando nas Trevas
Os galhos longos e finos das
velhas árvores que margeavam a estrada lembravam mãos com seus dedos esguios
abraçando tudo ao seu redor. Na noite sem lua nem estrelas uma luz sinistra e
sombria surgia por trás da velha floresta, tornando-a um cenário de fundo
aterrorizante como se fosse um realístico filme de terror. A velha viatura
policial corria a toda velocidade, seu motorista dirigindo como um filho
avisado de última hora sobre a morte do pai em um estado distante, correndo
para um última despedida em poucas horas. Em meio à escuridão a única luz
presente eram os faróis do carro que iluminavam pouco à frente, como os olhos
de um lobo ferido em busca de abrigo e repouso. Pela janela o frio cortante que
havia do lado de fora penetrava aos poucos no interior do veículo, tocando a
face da jovem como as garras gélidas e letais da morte. Samantha já havia explicado
ao companheiro sobre o caso de antes uma dezena de vezes. Era difícil convencer
alguém sobre a existência de monstros ou demônios, principalmente uma pessoa em
sã consciência e em seu estado racional perfeito. Mas a jovem sabia o que havia
visto, sabia e seu coração ainda disparava apenas em lembrar das criaturas que
quase lhe haviam ceifado a vida não muito tempo atrás.
—Samantha, você tem que me ouvir,
a cidade… ela – começou a dizer o sujeito ao volante do carro – Acredite, a
cidade não está como você se lembra dela… as pessoas, elas não estão normais,
elas não são mais elas mesmas… aquelas coisas, eu não sei dizer, não sei dizer
se são ou não as pessoas que nós conhecíamos…
Os olhos da mulher estavam com
olheiras roxas e avermelhados de tanto chorar. Ela sabia que o que quer que o
policial Johnson tivesse para lhe dizer seria tão assustador quanto aquilo que
ela mesma já havia experimentado aquela noite. Seu olhar estava fixo na
estrada, no facho de luz estreito criado pelos faróis do carro em meio à
neblina intensa que se formava naquela escuridão. Procurava afastar os
pensamentos ruins da mente, mas mal conseguia olhar pela janela lateral do
veículo com medo que uma das criaturas de antes estivesse os seguindo. Seus
dentes batiam, tremendo de frio e medo.
Johnson não movia o olhar também,
estava com o semblante sério, frio. Era estranho para a mulher que sempre o
vira sorrindo e sendo gentil com todos. De alguma forma, Samantha se
identificava com ele mais que com todos os outros na delegacia, pois ambos
sempre procuravam ser atenciosos com todos, mesmo nos casos mais difíceis. Algumas vezes uma gentileza pode ser mais
eficaz que a dureza, assim como muitas vezes a pena já se provou mais poderosa
que a espada, não é verdade? – dizia sempre o sujeito. Mas não era mais
aquele sujeito sentado no banco de estofado esfolado do velho carro, era um
homem distante, um homem que mesmo sem saber como ela estava tinha vindo até
ali apenas para procurar por ela e descobrir se ela estava bem, um homem que
Samantha sentia orgulho em haver conhecido.
Qualquer que fosse a explicação
sobre o estado da cidade, a policial não esperava por coisa boa, no entanto,
criara coragem para perguntar ao amigo sobre o que ele estava falando. Por um
momento fora como se o homem fosse pego em um sonho distante, pois levara um
susto quando a mulher lhe tocara o ombro, fazendo o carro dançar na estrada.
Pediu desculpas e explicou que sua mente ainda estava de alguma forma presa no
terror que vivera pouco tempo antes. Apenas aquelas poucas palavras já eram o
suficiente, Samantha sabia que não fora apenas ela que vira o inferno de perto.
Johnson refletira por um momento, depois olhara para a amiga com o canto dos
olhos e então começara a falar.
As palavras do sujeito atingiam a
mente da mulher com imagens fantasmagóricas como se ela estivesse vivenciando
cada detalhe. O policial explicara que logo ao receber a ligação da mesma
pedindo para que fosse assumir seu turno, começara a se trocar e se preparar
para sair, mesmo antes dela desligar o telefone. Dissera que sentira em sua
garganta um nó que lhe prendera a respiração no mesmo instante, de alguma forma
ele sentia que algo estava errado. Estavam prestes a entrar em um pesadelo de
proporções magnânimas e Johnson de algum modo sabia disso. Chegara à delegacia
menos de quinze minutos depois de desligar o telefone. Viera com o jipe que
possuía levantando voo nas lombadas que encontrava nas ruas pelo caminho. Assim
como esperava, ela havia saído em uma das viaturas que ficavam reservadas para
emergências, deixando a outra na vaga ao lado da entrada. Assim que estacionara
o jipe saltara do veículo e entrara na viatura, mudando-a de lugar, deixando-a
estacionada na rua para o caso de precisar sair dali às pressas. Entrara no
prédio e fora até o armorial, apanhara algumas outras armas e as colocara no
veículo, da mesma forma como Samantha já havia feito antes. Voltara para dentro
do prédio e se sentara naquela mesma cadeira de frente para a mesinha com o
relógio digital sobre ela. Ficara imaginando o que teria acontecido, como a
amiga estaria naquele momento? Samantha era impulsiva demais, talvez devesse
ter esperado por ajuda.
O tempo passou, um minuto
tornou-se dez, dez tornaram-se meia hora e por fim mais de uma hora havia se
passado. O tempo de repente pareceu voar e mesmo que não tivesse sequer
cochilado, quando menos percebera o relógio marcava vinte e três e trinta. O
sujeito havia acabado de se levantar quando foi puxado de volta para a
realidade pelo som de tiros do lado de fora do prédio. Não apenas um tiro, mas
muitos.
Instintivamente empunhara sua
arma e correra na direção da porta, mas antes mesmo que chegasse à saída,
Hilton e O’Larry entraram correndo, suas armas também em punho. Hilton, que
havia entrado por último, virara-se socando a porta. Ambos eram policiais da
mesma delegacia, assim como Johnson e Samantha. Estavam com os olhos
esbugalhados, assustados e respirando com dificuldade. Nem era preciso
perguntar para saber que haviam corrido sem parar pelas ruas da cidade. Quando
interrogados pelo policial de plantão os mesmos explicaram de uma forma que era
quase impossível se acreditar. Segundo eles, as pessoas pelas ruas estavam se
atacando. Atacavam-se e se mordiam com voracidade, era como se tentassem
devorar umas as outras. Hilton havia sido mordido por um sujeito no bar onde
estavam, tentara de todas as formas possíveis evitar o confronto, mas o sujeito
que o atacara só parara após levar dois tiros. E o mais inacreditável era que
diziam que o sujeito se levantara, mesmo após levar dois disparos no peito à
queima-roupa. E segundo explicavam as ruas estavam tomadas por pessoas daquele
jeito, mesmo com tiros estava sendo impossível pará-los.
Johnson mal acreditava no que
estava ouvindo, mas era impossível questionar os dois com os fatos praticamente
estampados em seus semblantes. Hilton sentou-se em uma cadeira, dizia ele estar
com dores pelo corpo e sentia-se queimando por dentro, como se tivesse uma
febre terrível. Também o local onde o vândalo o mordera ardia como se estivesse
sendo marcado com um ferro em brasas. Os companheiros não sabiam o que fazer. O
policial de plantão lembrou-se de Samantha e correu para o telefone, mas o
celular da mulher não atendia, tudo que ele sabia era o último ponto de
referência para onde ela se dirigira. Enquanto pensava no que fazer o policial
Hilton lançou-se ao chão em espasmos epilépticos, O’Larry foi ao auxílio do
mesmo, procurando impedir que este se ferisse. John não sabia o que fazer, se
as ruas estivessem como ambos haviam explicado, ali era o lugar mais seguro que
poderiam estar. Poucos instantes depois Hilton parou de se debater. O’Larry
ajoelhado ao lado do sujeito baixou a cabeça e disse que era tarde demais, o
amigo estava morto e sequer sabiam o que acontecera.
Johnson lembrou-se da mordida,
teria sido a causa? Que tipo de doença se transmitiria assim, com uma mordida e
o pior, um ser humano infectado transmitindo doença dessa forma era no mínimo
sombrio e assustador, primitivo. Talvez, considerando o estado em que todos
estavam pelas ruas, fosse algum tipo de raiva, mas como isso teria começado e
como combater? Os gritos de O’Larry o trouxeram de seu mundo de pensamentos
para o mundo real outra vez. Quando o mesmo se virou viu O’Larry caído no chão
da recepção da delegacia com Hilton sobre ele, havia sangue por toda parte,
eles pareciam estar lutando. Não, lutando não, Hilton atacava o amigo e O’Larry
tentava se defender. Mas como? O outro não estava morto? Hilton não havia
entrado em estado de óbito apenas há alguns minutos? Johnson empunhou a arma no
momento exato, se tivesse demorado um segundo mais teria sido outra vítima. O
policial que supostamente estava morto se virara e lançara-se contra ele com
fúria, mas naquela distância Johnson jamais erraria um tiro. Em qualquer outra
circunstância não atiraria em um companheiro, mas ao que parecia Hilton, que
supostamente estava morto, havia ressuscitado e tinha acabado de matar O’Larry.
Aquilo tudo era macabro demais. O disparo da arma colocou fim ao tumulto, um
tiro bem entre os olhos fez Hilton desabar ao chão novamente. Ambos
companheiros de Johnson estavam diante de si, caídos e mortos. O pesadelo que o
policial temia estava realmente acontecendo.
—Isso… - começou a dizer Samantha
tão assustada que respirava com dificuldade.
—Desculpe, mas não tive escolha,
se não tivesse o feito seria eu a estar morto agora. Por favor, Sammy, sei que
eram nossos amigos, mas foi a única saída – respondeu o motorista.
—Pelo que você diz, quero dizer,
mortos que voltam à vida, se atacam, não reconhecem os próprios amigos… está
dizendo que se transformaram em zumbis? – disse a mulher.
—É difícil de acreditar, eu sei,
mas foi o que vi, algo assim, se é que podemos dizer, estão todos agindo como
zumbis e estão aumentando cada vez mais. As ruas estão lotadas, são nosso
próprio povo, Samantha, nossos próprios amigos, é terrível. Me pergunto se
metade da cidade não tivesse viajado devido ao feriado… o que teria acontecido,
como as coisas estariam…
—Depois do que vi mais cedo não é
difícil acreditar no que diz, eu só queria uma resposta pra essas coisas, isso
parece coisa de filme, não parece ser possível, mas está acontecendo…
—Deus está nos punindo, o
apocalipse está acontecendo, os pecadores estão se revelando, estão sendo
julgados e sentenciados – disse o rapaz com o suor escorrendo pela testa.
—Não, não é coisa de Deus. Deus
nos daria opções, Ele não pode ser tão cruel e injusto. Isso é coisa dos
homens, com certeza alguém começou isso, mas duvido que descobriremos quem e
como aconteceu. Estou assustada, se não enviarem ajuda vamos todos morrer –
disse a mulher verificando a trava e a munição da pistola que tinha em mãos,
tremendo demais para conseguir averiguar – O que eu sei é que ainda somos
policiais, ainda temos amigos que podem estar precisando de ajuda. Amigos,
parentes, pessoas que amamos e outras que nem mesmo conhecemos, mas juramos
proteger. Johnny deu sua vida para salvar a minha e não irei decepcioná-lo, vou
lutar até o fim. Precisamos nos equipar e ver o que podemos fazer. Pare na casa
de Jhenifer, ela mora logo na entrada da cidade, preciso me limpar e me trocar
e com sorte ela deve estar lá ainda, hoje era folga dela.
—Está bem… Samantha, estou feliz
por ter te encontrado com vida… principalmente depois de tudo que disse ter
passado.
—Também estou feliz de te ver de
novo, John, obrigada.
Enquanto continuavam pela estrada
no carro de patrulha Johnson explicou ainda que para confirmar suas teorias,
após atirar em Hilton o mesmo amarrara O’Larry em uma das cadeiras da
delegacia. Segundo ele, a sorte estava realmente de seu lado naquela noite,
pois menos de dois minutos depois de concluir os nós da corda O’Larry acordara
da morte agressivo e violento, debatendo e grunhindo ruídos sem sentido, sem
qualquer lembrança de quem fora ou qualquer traço de sua personalidade. O
policial fechou os olhos quando disse que atirara no amigo naquele mesmo
instante, amarrado naquela cadeira. Era preferível que ele morresse naquela
cadeira que se o deixasse lá e de repente ele escapasse e viesse a atacar
outros desavisados, não apenas lhes levando também à morte, mas
transformando-os posteriormente em outra coisa daquelas.
Samantha colocou a mão no ombro
do amigo, sabia que ele sentia-se fraco por não poder ajudar os dois
companheiros, mas sabia também que não era sua culpa, ele fizera o que tinha de
ser feito. Ela só esperava também ser forte o bastante para fazê-lo se chegasse
a sua vez.
Menos de dez minutos depois
Johnson estacionara em frente à casa da amiga da policial. Jhenifer era
secretária na delegacia durante o dia e morava em um pequeno bairro localizado
bem ao sul da cidade, quase na saída que levava para a floresta.
Estranhamente, desde que haviam
adentrado a área urbana todo o lugar estava imerso na escuridão total. Era um
black-out e naquela noite escura, sem lua nem estrelas no céu, apenas os faróis
do velho carro iluminavam o caminho. Johnson estacionou o veículo em frente ao
portão da casa de Jhenifer e manteve os faróis ligados e a chave na ignição, se
precisassem sair dali rápido seria melhor que não precisasse dar partida
novamente. Ao longe, pela luz dos faróis algumas figuras eram vistas
caminhando, mas os ocupantes decidiram não gritar por elas, afinal, não sabiam
se tratava-se de pessoas ou aquelas coisas que elas estavam se tornando.
Samantha saíra do carro primeiro e dando a volta decidira ser a primeira a entrar
na casa, Johnson cuidaria de sua retaguarda. Ambos apanharam as lanternas no
porta-luvas e seguiram em meio à escuridão. O que dava ainda mais calafrios não
era o fato de estar tudo em um completo breu e sim estar tudo no mais profundo silêncio.
Naquele vazio de sons, a única coisa que cada um deles era capaz de ouvir eram
as batidas do próprio coração.
Samantha passou pelo pequeno
portão e avançou pelo caminho trabalhado com mármore e parou na porta da frente
da casa da amiga. Tinha a lanterna na mão esquerda, a mesma mão que estava por
baixo do pulso da mão direita, onde carregava uma das pistolas que Johnson lhe
dera antes de saírem do carro. Afrouxando os dedos que seguravam a pistola a
mulher os levou até a maçaneta da porta, que para sua surpresa estava
destrancada. Jhenifer provavelmente não estava na casa – pensou a policial – a
amiga não seria descuidada de ficar escondida dentro da residência em meio
àquela escuridão com as portas abertas. Mas ainda que a outra não estivesse
ali, ao menos ela poderia apanhar algumas roupas e se trocar, estava ferida e
suja demais e felizmente ela e a amiga dividiam o mesmo número de figurino.
Johnson, pouco atrás dela, apontava a lanterna em direção à rua, procurando por
vestígios de qualquer pessoa por perto, mas aparentemente estavam sós.
—Sammy – disse ele – É melhor não
nos demorarmos mais que o necessário. Quanto antes seguirmos para o centro
melhor, se há grupos tentando resistir a esse problema eles estão na delegacia
ou na prefeitura. Além disso, essa escuridão me deixa desconfortável. Não sei
como explicar melhor, mas tenho a sensação de que uma daquelas coisas vai
surgir do nada e saltar sobre mim a qualquer momento.
“Uma daquelas coisas vai surgir
do nada e saltar sobre mim a qualquer momento”.
As palavras do amigo atingiram os
ouvidos de Samantha como tiros em sua cabeça. Tudo que ela conseguira imaginar
ao assimilar o medo do companheiro fora em ser novamente pega de surpresa por
aqueles demônios enormes que confrontara na floresta. Sem pensar em mais nada a
mulher abriu a porta e pediu que o outro ficasse ali de vigia. Mesmo na
escuridão ela conhecia bem a residência e com a lanterna entraria e sairia
rapidamente – explicou. Jhenifer não tinha armas em casa nem nada que pudesse
ajudar, por isso Samantha apanharia as roupas que precisava e se a amiga
estivesse ali poderia levá-la junto com eles.
Samantha adentrou a casa
procurando por pistas de arrombamento. Não seria nenhuma surpresa se em meio
aquele problema um ou outro marginal pensasse em se aproveitar da situação.
Felizmente tudo parecia no lugar, ainda que a mulher só conseguisse enxergar
com clareza nos lugares exatos onde o facho de luz da lanterna atingia. Sem
perder tempo seguira direto para o quarto da amiga, sabia onde ela guardava
tudo na casa e até mesmo era capaz de imaginar quais roupas apanharia para
seguir em frente. Para sua surpresa Jhenifer continuava ali, provavelmente
assombrada demais para fugir.
A morena estava sentada na margem
da cama, próxima do criado-mudo com abajur de cor salmão. Tinha os cotovelos
sobre os joelhos, as mãos com os dedos entrelaçados e sua face estava afundada
entre os antebraços. Os cabelos longos e negros lhe caíam sobre as orelhas e
pelas costas e ela parecia chorar baixinho. Samantha não se surpreendera,
Jhenifer era mesmo o tipo de mulher medrosa, vivia caindo em pegadinhas no
trabalho e ninguém se conformava em como uma mulher daquelas estava trabalhando
em uma delegacia. Talvez fosse pelo fato de a pacata Little River ter um ênfase
no sentido da palavra pacata ao qual referiam a si mesmos.
Sem pensar duas vezes a policial
correu até a amiga e ajoelhou-se ao lado da mesma. Colocara a arma no chão e
apontando a lanterna para a outra se aproximara mais, levantando o cabelo que
lhe caía sobre a orelha e cobria seu rosto. E nesse momento o terror mostrou
mais uma de suas faces brutais.
Jhenifer rosnou, literalmente, em
um grito tão agudo que fizera a alma de Samantha gelar. Os olhos da amiga
estavam completamente tomados de um branco profundo, fazendo parecer que nunca
tiveram o outrora verde tão encantador que já possuíra. Os lábios vermelhos,
sempre preenchidos com o batom característicos, estavam rachados e sangrando e
parte de sua face estava envolta pelo vermelho que escorria dos ferimentos. A
morena lançou-se sobre Samantha com fúria, segurando seus dois ombros com força
e puxando-a de encontro a si. Sem ter o que fazer ou tempo para pensar, a
mulher colocara a antebraço esquerdo abaixo do maxilar da outra, apertando seu
pescoço e impedindo que ela avançasse mais. Era incrível a força de que
Jhenifer dispunha, custava acreditar que fosse ela mesma. Em uma luta intensa
Samantha caíra de costas no chão com a amiga sobre ela e com isso a lanterna
escorregara de sua mão, caindo e indo rolar para debaixo da cama. Tudo que a
policial conseguia pensar naquele frenesi eram as palavras de Johnson, de que
se ela fosse mordida estaria tudo perdido. Sentindo o hálito quente da amiga em
seu rosto e o sangue do rosto da mesma que escorria por seu pescoço, a mulher
tateou com a mão livre pelo chão até encontrar a arma que havia deixado. Ao
sentir o metal lhe tocar a pele com sua superfície gélida, em questão de
segundos a mesma apontou para a cabeça da amiga e atirou. O disparo naquela
distância explodira a cabeça da outra em pedaços ao mesmo tempo que lançara seu
corpo alguns metros para longe. Samantha, por sua vez, perdera os sentidos, a
explosão do tiro tão próxima de seu ouvidos a deixaram surda, também teria
ficado cega por alguns momentos se já não estivesse na completa escuridão.
—Sammy! Samantha! Você está aí? O
que aconteceu?! – gritou o amigo entrando no quarto.
Aproximando-se e iluminando o que
podia com a lanterna John viu a mulher caída no chão envolta em uma poça de
sangue enquanto a outra estava a um canto próxima de uma parede.
—Oh, Deus! Samantha, o que houve
com você? Diga alguma coisa, não morra, por favor! – gritou o mesmo
desesperado, aproximando-se e ajoelhando, tomando-a em seus braços – Por favor,
não esteja ferida, não tenha sido mordida, por favor – repetia ele enquanto
procurava por ferimentos no pescoço e outras partes do abdômen e tórax da
mulher.
—Não… estou… ela não me mordeu…
mas ela tinha sido infectada, eu não tive escolha – disse a policial com
esforço, ainda lutando para recuperar os sentidos.
Segurando a mulher com um braço
enlaçado em seu pescoço, o companheiro ajudou-a a se levantar. Certificando-se
de que a mulher estava com a arma em sua mão, o sujeito lhe segurou a face pelo
queixo, seu rosto iluminado pelo facho de luz da lanterna. Encarou-a nos olhos
e esperou um breve momento até que percebeu a mesma a lhe encarar também, seus
olhos castanhos mirando os dele mesmo.
—Precisamos sair daqui e rápido,
a infecção já deve ter alcançado os moradores, vamos estar encrencados nessa
escuridão, você me entende? – disse ele. Samantha apenas balançou a cabeça para
cima e para baixo em um gesto de que compreendia, mas não disse nada.
Saindo do quarto, Johnson se
esforçava para conseguir ajudar a amiga a andar ao mesmo tempo que empunhava a
lanterna e a pistola. Ao tomarem o estreito corredor que levava da sala de
estar para a porta da frente outro problema surgira no caminho. Quando Johnson
apontara a lanterna na direção da porta três ou quatro “criaturas” adentravam a
casa. Era visível não tratar-se de pessoas normais, pois estavam em frangalhos,
tanto suas roupas quanto suas faces e partes de seus membros. Com certeza eram
mais desavisados que haviam sido atacados por outras vítimas já transformadas. Enquanto
apontava a lanterna com a mão esquerda – que por sinal estava enlaçada na
cintura de Samantha, dificultando tudo – o policial atirou contra as criaturas,
mas não tinha certeza se havia acertado alguma em meio à escuridão, pois a cada
tiro o recuo fazia seu corpo balançar e consequentemente a luz da lanterna se
movia em diferentes direções, fazendo a mira ficar cada vez menos precisa.
—A porta… da cozinha – disse
Samantha enquanto se colocava em pé com suas próprias forças – vamos ter que
sair por lá e vermos se conseguimos dar a volta na casa até o carro.
Os dois saíram a passos largos, o
policial na frente apontando com a lanterna enquanto a mulher o seguia pela
retaguarda. Ao saírem dois outros zumbis estavam a poucos metros no pequeno
quintal dos fundos da casa da mulher. Assim que Johnson apontou a lanterna para
eles Samantha tirou o corpo para o lado, em um ângulo em que o amigo não
estivesse ameaçado e atirou duas vezes, dois tiros precisos nos crânios das
criaturas.
—Ilumine o caminho e se algum
deles aparecer eu atiro, vamos dar o fora daqui logo – disse ela com dificuldade,
ainda se recuperando do incidente alguns minutos antes – felizmente parece que
minha pontaria continua boa – sorriu.
Após saírem na rua ambos viram
que a situação era bem mais caótica do que esperavam. Haviam criaturas por toda
parte e o pior, os que estavam mais longe não podiam ser vistos, mesmo com a
lanterna, apenas os mais próximos. Voltar ao carro de patrulha estava agora
fora de cogitação dado o bando de inimigos entre eles. Vamos morrer – pensou Samantha.
—O que vamos fazer? – perguntou a
mulher para o outro.
—Você conhece melhor essa região,
nos guie por um caminho na direção do centro, vamos tentar encontrar outros ou
um veículo. Se a situação não melhorar vamos precisar escapar da cidade,
acredito que é o que todos estão pensando.
—Mas temos um compromisso, servir
e proteger. Não acredito que estou dizendo isso – disse a mulher cerrando os
punhos.
—Não poderemos ajudar ninguém se
estivermos mortos e creio que é o que vai acontecer se ficarmos por aqui –
continuou o policial enquanto atirava em um zumbi que se aproximava – se isso
for um incidente isolado a ajuda vai demorar pra chegar e se for apenas um foco
de uma epidemia maior, que veio de outras cidades, acredito que não teremos
apoio de fora tão cedo.
Por um breve momento Samantha viu
outra pessoa no policial Johnson. O sujeito de cabelos arrepiados parecia haver
envelhecido, ou melhor, amadurecido dezenas de anos desde a última vez em que
haviam se falado. Talvez o medo e aquela situação lhe tivessem ativado um
gatilho que despertara adiantado o homem que ele um dia estivesse destinado a
ser. Ademais, ele tinha razão em sua dedução – aquele problema estaria
ocorrendo apenas ali naquela cidadezinha esquecida pelos políticos e por Deus
ou haveria o mesmo acontecendo em outras? O problema com certeza não poderia
ter começado naquele fim de mundo, então se a infecção e as criaturas que ela
vira na floresta haviam vindo de fora, quantas outras cidades estariam
encarando algo como eles naquele momento?
—Me dê a lanterna – disse a
mulher, estendendo a mão para o companheiro – vamos sair logo desse lugar, você
tem razão, se ficarmos aqui e morrermos nesse lugar nunca teremos nenhuma
resposta e também não vamos poder ajudar ninguém. Vamos pegar um atalho e
seguir em frente, se não encontrarmos outros no centro vamos dar o fora dessa
cidade o quanto antes.
Johnson lhe passara a lanterna
consentindo com um aceno de cabeça ao que a mulher havia acabado de dizer.
Enfim, o policial sentira que o espírito de Samantha estava revigorado, da
forma que deveria estar se fossem tentar sobreviver aquele caos. Ao mesmo
instante ambos gelaram dos pés à cabeça quando uma luz muito forte os cegou. A
luz parou bem diante deles ao mesmo tempo em que o som de uma derrapada parava
com o cheiro de pneus queimando.
—Se estão vivos digam alguma
coisa! – gritou uma voz – Iremos atirar em cinco segundos.
—Quem está aí?! – berrou Johnson.
Uma voz diferente da primeira falou por detrás da luz “Eu disse que eram
sobreviventes, zumbis não carregam lanternas, cara”. “Poderia estar presa em
uma daquelas coisas, é preciso ser precavido” – respondeu a primeira voz
novamente.
—Vocês estão bem? Há quantos aí
com vocês? – disse Samantha com a visão voltando ao normal. O sujeito por trás
da luz falou novamente.
—Vocês foram mordidos? Estamos
indo para o centro ver se outras pessoas escaparam dessas coisas, se não
estiverem mordidos podem vir conosco.
—Estamos bem – respondeu Johnson
– estávamos na viatura, mas precisamos parar e os zumbis tomaram o lugar e não
conseguimos voltar para ela.
—Tudo bem – respondeu um sujeito
gordo de cabelos negros e lisos com os dentes de coelho salientes até quase
saltarem para fora da boca, aproximando-se e estendendo a mão para o policial –
eu e meus dois primos estamos indo para o centro. Todo mundo por aqui está
perdido, acho que nossas famílias e amigos quase todos se foram, tivemos até
que atirar em alguns deles, mas a força, cara, sem querer, entende? Venham
conosco, vamos dar o fora desse lugar antes que eles nos alcancem. Não é seguro
andar a pé por essas ruas.
Quando ambos deram a volta
puderam constatar que a luz forte era dos faróis de um jipe sem capota muito
velho, cuja cor era impossível de se definir naquela escuridão.
—Você é da polícia, cara? Que
irado, agora vamos ficar bem! – disse o sujeito no volante, um adolescente
magrelo e aparentemente muito alto, quase como um jogador de basquete, com
cabelos negros longos e lisos como os que alguns músicos de bandas de rock
usavam. Havia um terceiro sujeito no banco de trás, outro gordo, mas este loiro
de olhos verdes e muitas sardas.
—Meu Deus, gata! – exclamou ele
ao olhar para Samantha – O que foi que aconteceu com você? Esse machucado, você
foi mordida? – perguntou apontando para a perna exposta da mulher na calça
faltando toda uma barra.
—Muito pior que uma simples
mordida – disse ela com cara de poucos amigos – Mas não estou infectada, veja –
continuou, apontando para a enorme cicatriz na coxa suja de lama – havia um
amigo comigo, ele me ajudou, está cauterizada, está vendo?
—Puxa, como fez para fechar esse
corte? Que bom que não está possuída como os outros.
—Não vai querer saber – respondeu
a mulher enquanto subia na traseira do jipe.
Tão logo subiram o veículo saiu a
toda velocidade pelas ruas. O rapaz no volante dirigia como um loco, nunca
diminuindo abaixo dos 120km/h, a não ser nas curvas que fazia sempre acima de
80. Era preciso segurar-se com força, pois mesmo nas retas, ao ver algum
infectado bem diante dos faróis era preciso desviar de imediato e isso concedia
diversos solavancos.
Ao saírem para a rodovia que
ligava aquele bairro ao centro e também à uma das saídas de Little River, a
iluminação revelara uma situação extremamente crítica. Centenas de pessoas
haviam sido contaminadas pela infecção, haviam automóveis batidos por toda
parte e um caos entre sobreviventes tentando fugir e as criaturas caminhando
sem rumo. Naquele ritmo em pouco tempo aquilo tornar-se-ia uma pandemia, talvez
em escalas fora do imaginável.
Tomando um desvio ao lado de uma
ponte o rapaz adentrou novamente a área urbana da cidade e após pegar uma
avenida reduziu a velocidade a 60km/h. Dissera ele que adiante dali, a apenas
alguns quarteirões, estava a praça da igreja de Saint Louis, a principal capela
de toda cidade, mas antes haveriam de passar defronte o teatro municipal e
poderia ser que houvessem sobreviventes escondidos lá. Samantha e Johnson
chegariam ao teatro, mas apenas os dois.
Ao atravessarem por um cruzamento
cujo semáforo estava travado no sinal verde e não mais funcionava, uma
caminhonete viera no sentido de cruz em altíssima velocidade e colidira com o
jipe na parte frontal do lado do banco do passageiro fazendo-o rodopiar
diversas vezes. Samantha e o policial com ela que estavam em pé segurando-se no
apoio das ferragens na parte de trás do veículo foram imediatamente lançados
para fora do mesmo, instantes antes do próprio capotar e voar para dentro de
uma loja pela vitrine. A mulher imediatamente ajoelhou-se tentando recuperar a
visão novamente, mas tudo estava embaçado demais. Nem a visão nem a audição pareciam
funcionar direito. “Sammy!” – ouviu ela – “Você está aí?”. Era a voz de
Johnson. A mulher gritou que sim, buscando no fundo de seus pulmões as forças
para que alguma voz saísse. Quando finalmente conseguiu abrir os olhos viu o
companheiro ao seu lado, tão ferido e sangrando quanto ela. O mesmo ajoelhou-se
ao seu lado e colocou a mão esquerda em seu ombro. Estava ofegante e tão
machucado que parecia um daqueles zumbis.
—Quebrou alguma coisa? Consegue
se levantar? – perguntou ele.
A mulher não respondeu, apenas
apoiou-se em um dos joelhos e forçou-se a tentar levantar. A dor de um milhão
de farpas a atingiu na coxa, aquela mesma coxa exposta pela falta de uma das
barras de sua calça. Quando se virou, em meio aos borrões que ainda ofuscavam
parte de sua visão Samantha viu um estilhaço enorme de vidro enterrado em sua
pele. Ao tocá-lo, a dor pareceu correr por cada célula de seu ser, aquilo tinha
no mínimo dez centímetros sendo desses cinco centímetros cravados dentro de sua
carne. Pensando que estava em choque e que a verdadeira dor viria dali alguns
momentos quando seu sangue esfriasse e seu ritmo cardíaco voltasse ao normal a
mulher agarrou o pedaço de vidro com o polegar e o indicador e puxou com toda
força. Mesmo pensando que a dor posterior fosse maior o grito agudo da policial
pareceu um uivo agonizante que ecoara nas quatro direções daquele cruzamento.
—Samantha! Samantha! Samantha! –
gritava o policial ao seu lado, mas a mulher ao qual se dirigia nada ouvia. Era
como se as palavras do sujeito viessem duplicadas milhões de vezes, como se
cada fonema repicasse em todos os objetos e reverberasse nas paredes de todos
os prédios. Johnson a chacoalhava pelos ombros, mas a jovem estava perdida em
outro mundo, um mundo distante, um lugar acolhedor dentro de sua mente, onde
seu psicológico tentava lhe proteger dos perigos do mundo real. Johnson olhando
em volta decidira que não tinha mais tempo para acordar a mulher do choque em
que se encontrava. Sem perder tempo afundou a arma que tinha nas mãos no coldre
da cintura e passando uma das mãos pelas costas e a outra sob as coxas da amiga
tomou Samantha nos braços. De todas as direções os zumbis estavam se
aproximando, cada vez mais deles e cada vez mais rápidos. Em pé, com a mulher
nos braços, o policial olhou na direção de onde o jipe batera após capotar, mas
não vira nenhum dos outros ocupantes e o local já estava com mais de uma dúzia
daquelas coisas a procurarem por alguém nos destroços. “Me perdoem” – pensou
ele, girando o corpo e olhando na direção do teatro.
Felizmente – pensara, ele era
mais rápido que aquelas criaturas e ainda pensava de forma racional. Ao
aproximar-se da bilheteria na frente do grande prédio o sujeito constatara que
tudo ali também já havia sido arrombado, muito provavelmente por outras pessoas
em fuga. Haveria ali algum outro sobrevivente? Chutando as portas duplas com
força o mesmo adentrou correndo com a mulher nos braços. Por sorte Johnson
malhava todos os dias, fazia parte de seu cotidiano como policial e Samantha
era uma mulher bem leve. Ao chegar na área da plateia, o sujeito deixou
Samantha em uma das quinhentas cadeiras e voltou para a entrada, puxando duas
mesas, algumas cadeiras, um armário e uma escrivaninha, bloqueando a porta pelo
lado de dentro. Se tivesse alguma daquelas criaturas ali ele poderia
enfrentá-las, a última coisa de que precisava naquele momento era que as
centenas de monstros da rua adentrassem seu refúgio também. Quando voltava para
o auditório o jovem deu-se de frente com outro perigo iminente. Haviam alguns zumbis
aproximando-se de uma Samantha desacordada na mesma cadeira em que ele a havia
deixado. Sacando da arma ainda há mais de dez metros o policial começou a
atirar, três caíram atingidos por disparos certeiros na cabeça, os outros
receberam disparos no peito ou nos ombros e continuavam a caminhar,
aparentemente agora com mais fúria.
Antes que percebesse o som de
mais disparos se unira ao do policial. Samantha acordara em meio ao tiroteio e
sacara sua própria pistola, começando também a atirar nos zumbis que se
aproximavam dela. Em poucos segundos todos os alvos estavam no chão.
—Sammy! – gritou o sujeito,
aproximando-se e encarando sua face de perto, olhando em seus olhos procurando
sinais de que ela estava bem.
—O que houve? Acho que subestimei
a dor que estava sentindo e desmaiei. Quanto tempo eu fiquei desacordada? –
perguntou ela.
—Apenas alguns minutos, mas a
coisa está feia.
Ambos olharam cada um para um
lado. Das portas laterais dezenas de zumbis invadiam o local. Muito mais inimigos
do que eles tinham munição para derrubar.
—Temos que dar o fora daqui! –
disse Samantha levantando-se.
—Não dá pra escapar pelas portas,
bloqueei a porta da frente achando que só invadiriam por lá e está impossível
andar pelas ruas. Me siga, atrás do palco há uma escadaria que leva para o alto
do prédio, podemos subir e descer pela saída de incêndio na lateral depois.
—Parece que não temos escolha e
nem tempo pra pensar – respondeu a mulher.
Em menos de um minuto a dupla de
policiais estava subindo por uma escada de metal em caracol, os sons de suas
botas se chocando contra o ferro escuro se perdendo no acústico dos bastidores
enormes do teatro. Ao saírem no alto do prédio de três andares, Johnson
empurrou um latão cheio d’água para a porta, deixando-os sós naquele enorme vazio.
—Acredito que eles não irão nos
seguir aqui – disse a policial, olhando para o amigo.
—Realmente está bem tranquilo
aqui em cima, pena que não se pode dizer o mesmo do restante. Estou tentando
acreditar que encontraremos outros na delegacia ou prefeitura, mas algo em mim
se força a negar isso. Não sei o que fazer.
A noite escura estava envolta
pela névoa. Do alto do prédio Samantha e Johnson podiam ver o estado crítico em
que a pacata cidade se encontrava. Ao longe os focos de incêndio eram muitos,
vários lugares tomados pelas chamas. Nas ruas havia uma infinidade de pessoas,
das quais não era possível distinguir os ainda humanos e os transformados em
criaturas canibais assassinas. Eram diversos os pontos sem luz e o
engavetamento de carros se fazia visível por toda parte. Ao que parecia, em
poucas horas Little River havia mudado de uma cidade pacífica para um inferno
de proporções além da imaginação.
—Eles tem intelecto limitado –
continuou a mulher – aparentemente não sabem subir certos tipos de escadas,
como essa que subimos agora, por isso nenhum veio para cá. De repente estou me
perguntando várias coisas, mas acho que eles também não sabem nadar, embora eu
não saiba se afogariam e também não devem conseguir definir armadilhas, aposto
que iriam de encontro ao fogo ou a uma bomba, mesmo que a vissem. Acho também
que não sentem dor, é como se seu sistema nervoso estivesse desligado, mesmo
levando tiros de perto eles não se detém, não param, isso os torna extremamente
perigosos.
—Você tem razão, não adianta
perder o controle, precisamos pensar de forma racional. Vamos seguir em frente
e se não encontrarmos ninguém vamos dar o fora. Apenas nós dois não podemos
fazer muita diferença nesse caos.
—Olhe – disse a mulher
aproximando-se da guarda do prédio – todos os imóveis dessa rua foram
construídos bem próximos um do outro. Dá pra saltar de um pro outro com
facilidade, se todos estiverem assim como esse pode ser mais seguro se
avançarmos pelo alto, creio que com isso adiantaríamos uma boa distância até a prefeitura
sem ter que encarar mais conflitos com as pessoas que foram contaminadas.
Johnson aproximou-se a analisou a
distância e altura entre os prédios e concordou com a mulher. Verificou a
própria arma e depois sua munição restante. Samantha fez o mesmo, ambos se
encararam com a expressão desapontada de quem sabe que mal tinham munição para
um novo confronto. Afastando-se da beirada o sujeito correu e pegou embalo e
saltou para o prédio vizinho. A jovem fez um sinal de positivo para ele com o
polegar e o seguiu da mesma forma. Aparentemente tinham razão sobre o alto dos
prédios. Não haviam zumbis.
Os policiais repetiram o
procedimento em mais de uma dúzia de prédios. Em alguns deles, o seguinte era
mais alto e eles saltavam para a escadaria de incêndio ou na direção de alguma
janela do mesmo, escalando como podiam depois. Se essa forma de se mover era
mais segura, ao menos era possível afirmar que era extremamente cansativa. Por
fim, após quase quarenta minutos de corrida por sobre prédios e saltos ao estilo
tartarugas ninjas, os dois pararam na borda de um prédio de dois andares. Suas
visões, no entanto, eram para o imóvel em frente, o grande prédio de dez
andares da prefeitura. Assim como os demais locais, a frente do mesmo estava
envolta em caos, haviam carros batidos por toda parte, cadáveres largados pelo
chão em alguns pontos, provavelmente vítimas que ainda não haviam se
transformado e alguns pequenos focos de incêndio. Haviam vários corpos
mutilados e entre eles diversos policiais. Armas eram vistas em alguns lugares
e os dois se perguntaram se teria munição em algumas delas.
Mesmo sabendo dos riscos, ambos
desceram pela escadaria de incêndio ao lado do prédio em que se encontravam e
seguiram para o destino. Antes que conseguissem chegar as portas do local, no
entanto, suas atenções se voltaram para as sirenes de um carro de polícia que
descia pela rua em grande velocidade. Ironicamente, para piorar a situação,
depois de tudo que ambos haviam passado para chegar até ali, o maldito carro
viera diretamente para cima deles na calçada onde estavam. Johnson empurrou
Samantha que foi lançada alguns metros, caindo no asfalto sujo, ralando o braço
e o ombro. As coisas parecem que só
melhoram – pensou ela, enquanto se esforçava para levantar. O policial, por
outro lado, mal tivera tempo de sair da frente do carro desgovernado. Havia
sido atingido em cheio pela lateral do veículo e estava caído de costas perto
da porta de uma loja em ruínas, toda depredada.
Quando Samantha ouviu o barulho
de tiros levantou-se rapidamente, fora como se dentro dela um botão se
ativasse. Johnson estava ainda deitado, mas com a arma em punhos e atirando em
vários zumbis que vinham de uma das esquinas poucos metros longe. O que ele não
via era que do outro lado, pela outra esquina, outra dezena de zumbis se
aproximava, provavelmente atraídos pelo som dos disparos. Correndo para onde o
amigo se encontrava a mulher passou a atirar nos monstros que vinham da outra
extremidade. Era mais do que óbvio que ficariam sem munição e à mercê das
criaturas antes que derrubassem metade do que viam.
Aproximando-se do companheiro a
mulher ajudou-o a levantar, parecia que o mesmo havia quebrado o pé ou o
tornozelo, mas aos gemidos ainda apoiava-se em uma das pernas. Ambos precisavam
sair dali, descer do prédio os deixara expostos novamente e praticamente agora
o que ainda tinham de munição tinha ido por água abaixo. No exato momento em
que o amigo se levantara em pé a mulher fora surpreendida pela ação que
sucedera. Cuidado! – gritara ele. Nem
houvera tempo para qualquer reação, tudo ocorrera em poucos segundos. Ao ouvir
as palavras do outro policial a mulher percebera um zumbi em suas costas,
poucos centímetros atrás de seu pescoço. Aquela sensação horrível de ter o
hálito pútrido da criatura quase em sua pele lhe fez embrulhar o estômago.
Johnson quase a abraçou, passando a mão direto pela lateral de sua cabeça e
segurando o monstro pelo pescoço. No alvoroço que se sucedeu Samantha lutou
contra o abraço da criatura que tentava agarrá-la e afastando-se pouco,
empunhou a arma e atirou, o que se não fosse o último disparo, provavelmente
deveria ser o penúltimo.
A criatura caiu com parte da
cabeça faltando e a mulher estendeu o braço para o amigo que se segurou nela,
apoiando-se em seu ombro. Os dois saíram a passos largos, uma vez que o sujeito
não conseguiria correr. Aos poucos a rua se infestava com as criaturas que
surgiam das sombras. Samantha seguia em direção às portas duplas da entrada da prefeitura,
a poeira e a fumaça intensas no ar inundando seus pulmões, dificultando sua
respiração e ofuscando sua visão. Quando estavam já perto da entrada o som de
um disparo zuniu pelo ar. Em seguida outro. E outro, e outro. A policial olhou
para trás assustada, os disparos não eram de pistola ou qualquer arma pequena,
era com certeza um rifle de precisão extremamente calibrado. Para a surpresa da
mulher os zumbis estavam aos poucos caindo, um a um.
—Entrem logo! – berrou alguém que
Samantha não conseguia ver onde estava – Se não estão infectados é bom não
ficarem aí fora, entrem se quiserem viver!
Não foi preciso pedir duas vezes.
A porta estava destrancada e assim que a jovem adentrou levando o amigo nos
ombros que percebeu tudo deserto. O salão de entrada da prefeitura não tinha
ninguém, mas haviam sinais de que outras pessoas tinham passado por ali. Sofás,
cadeiras e escrivaninhas estavam deitadas em posições estratégicas como
barricadas e havia sangue por toda parte. Com certeza um grupo bem armado já
estivera ali e usara a entrada para se proteger, fazendo do local sua própria
trincheira improvisada. Samantha chutou um sofá de dois lugares e deixou o
amigo sentado no mesmo e saiu a procura de armas ou munição deixadas para trás
no caso de os mesmos de antes haverem feito uma fuga às pressas, mas
infelizmente não achara nada. Cansada, voltara para junto do amigo, cuja
expressão era a de alguém que não aguentava mais aquele situação. Sentando-se
ao lado do rapaz, a policial suspirou.
—Alguém nos ajudou – disse ela –
tinha alguém atirando nos zumbis enquanto entramos. Acredito que hajam outros
sobreviventes dessa merda toda, devem estar escondidos em cima, nos andares
superiores. Não vi de onde vinham os tiros que derrubavam os zumbis para nos
dar cobertura, então suspeito que estavam atirando de alguma janela no alto.
—Vamos subir então? – respondeu o
outro, usando uma pergunta – Pelo que vi lá fora, não vai ser fácil encontrar
um carro funcionando. Sabe, não quero ser pessimista, mas acho que a cidade
está condenada, se os outros bairros estiverem como o centro, está tudo
perdido.
—Acho que não temos escolha.
Nossa munição se foi e não achei nada por aqui. Sair não está nos melhores
planos, como já vimos. Acho que não temos escolha a não ser irmos procurar por
outros que tenham escapado. Mesmo assim eu me pergunto se nos andares
superiores não terão outras daquelas criaturas, todo cuidado é pouco…
Samantha começara a ponderar
sobre tudo que acontecera e se lembrara de seu pai e seu irmão. Em meio ao caos
que se transformara aquela noite, a jovem esquecera-se de que talvez os dois
ainda estivessem em casa. A terrível possibilidade de que tivessem se tornado
mais daquelas coisas quais ela mesma já havia matado tantos naquela noite por
um momento lhe assombrara a mente e seus olhos se encheram de lágrimas. Mas o
que ela poderia fazer àquela altura dos acontecimentos? A casa onde morava era
muito longe do local onde estava e nem mesmo um veículo para fugirem dali os
mesmos haviam encontrado. Como poderia se perdoar por fugir e deixá-los para
trás, quando, em sua mente, lhe ocorrera que os dois provavelmente deveriam
estar lhe procurando? E o que fazer com Johnson, que fora em seu auxílio e se
ferira enquanto lhe ajudava? E Johnny, teria ele sobrevivido depois do acidente
após separarem-se na floresta. Aos poucos o ar começou a desaparecer, a
deixá-la sozinha naquele mundo que ficava cada vez menor, mais apertado, mais
sufocante. De repente, Samantha se sentiu pequena, uma menininha fraca e
indefesa e o pior, incapaz de proteger os outros. Era como se pudesse ouvir
todos aqueles zumbis ao seu redor gritando “Você
falhou, Samantha!”.
Um estrondo com o impacto de um
terremoto fez Samantha pular no sofá onde estava sentada. Outro estrondo.
Parecia mesmo um terremoto. Outro e outro e a mulher levantou-se com os olhos
arregalados. O que poderia estar fazendo o chão tremer daquela forma? Não
apenas o chão, mas as paredes, as janelas, tudo. Johnson parecia não sentir o
que estava acontecendo, não se movia. Os olhos do sujeito estavam fechados e
ele não expressava nada. Teria morrido – pensou Samantha. Não. Sem pensar a policial agarrou-se ao amigo procurando
levantá-lo. Passou um dos braços do mesmo por seu pescoço e com esforço ergueu
o homem que era maior e mais pesado que ela. Os estrondos continuavam e uma
parede onde estavam ostentados os quadros com os doze prefeitos que já haviam
governado aquela cidade começou a trincar-se, os quadros caindo ao chão. Ao
mesmo tempo Samantha se equilibrava procurando levantar-se do sofá com o amigo
nos braços.
—Eu sabia que estavam aqui! –
gritou um sujeito com traje de soldado que surgira correndo por uma escadaria
que levava ao primeiro andar. O mesmo aproximou-se de Samantha e olhou para o
companheiro da mesma, seus olhos se arregalaram no mesmo instante – Tome cuidado,
ele foi mordido! Tem que se afastar dele!
Os olhos da jovem e os olhos de
Johnson se encararam pela última vez. Por uma fração de segundos ela foi capaz
de ver a mordida. Uma mordida no antebraço, próximo da mão que ele usara para
afastar o morto-vivo que a atacara há apenas alguns minutos. O problema agora
era que nesse momento Johnson não estava mais ali, não o sujeito que Samantha
conhecera. O que ela tinha em seus braços era um monstro que tomara o lugar do
companheiro. A mulher viu a boca do ser se abrir tanto quanto jamais imaginara
e lançar-se carregada de saliva e sangue na direção de seu pescoço. Quem diria
que o mesmo sujeito que a salvara de situação semelhante apenas alguns momentos
atrás agora a atacava da mesma forma? Outro estrondo derrubara a mulher de
joelhos com o zumbi agarrado ao seu pescoço. Parecia o fim.
A bota do soldado passou próxima
da cabeça da policial com a mesma velocidade de um tiro. O zumbi que a segurava
voou pelo ar e caiu de volta no mesmo sofá que ela havia virado para ambos
descansarem. O soldado passou pela mulher que se levantava e sacou a pistola do
coldre na cintura. Quando o mesmo ia já puxar o gatilho Samantha colocou uma
das mãos sobre o cano. O mesmo virou-se para o lado para poder encará-la e viu
as lágrimas escorrendo por sua face. Samantha olhava com pena para o amigo
transformado.
—Eu termino isso – disse ela e
apontou sua própria arma para o sujeito que se levantava no sofá. Por aquele
breve segundo que parecia demorar uma eternidade em seus pensamentos, Samantha
podia jurar que por trás dos olhos vazios e sem alma da criatura, o policial
Johnson a observava – Me perdoe, John e obrigado por tudo – concluiu enquanto
puxava o gatinho da Beretta que trazia. Era o último tiro que lhe restava, o
tiro que levara Johnson desse mundo.
—Me siga. Os outros estão
reunidos na parte dos fundos do estacionamento desse prédio, precisamos sair
daqui, esse local já está comprometido.
—Quem são vocês? – indagou a
mulher – Nunca o vi por aqui antes e não temos grupos militares privados na
cidade, como chegaram até aqui, quem os chamou e o que fazem?
O sujeito segurou a metralhadora
que carregava com mais força. Olhou para o lado, como se alguém mais estivesse
ali com eles e por fim encarou-a de volta.
—Que importa? Quer viver? Venha
comigo, ou pode ficar aqui e morrer, salvar sua vida não é minha prioridade e
nem parte da minha missão.
Samantha engoliu em seco o
palavrão e os desaforos que se formaram em sua garganta. Ela estava sem
armamento, sem munição e sozinha. Por hora, não havia nada que pudesse fazer
senão concordar com o que o sujeito diante de si dizia. Seus lábios já se
moviam para dizer que aceitaria a ajuda quando a parede atrás de si explodiu
lançando estilhaços de concreto por toda parte. O impacto fez Samantha ser lançada
de encontro ao soldado que caiu de costas no chão com ela sobre ele. Enquanto o
sujeito olhava por sobre o ombro da mulher a mesma virou a face para trás, suas
bochechas quase se colando.
Em meio à poeira e pedaços de
pedra e metal da parede algo podia ser visto do lado de fora do prédio. A
silhueta de um homem que parecia ter mais de três metros de altura.