Resident Evil ~ Terror em Little River ATO 2


Mergulhando nas Trevas


Os galhos longos e finos das velhas árvores que margeavam a estrada lembravam mãos com seus dedos esguios abraçando tudo ao seu redor. Na noite sem lua nem estrelas uma luz sinistra e sombria surgia por trás da velha floresta, tornando-a um cenário de fundo aterrorizante como se fosse um realístico filme de terror. A velha viatura policial corria a toda velocidade, seu motorista dirigindo como um filho avisado de última hora sobre a morte do pai em um estado distante, correndo para um última despedida em poucas horas. Em meio à escuridão a única luz presente eram os faróis do carro que iluminavam pouco à frente, como os olhos de um lobo ferido em busca de abrigo e repouso. Pela janela o frio cortante que havia do lado de fora penetrava aos poucos no interior do veículo, tocando a face da jovem como as garras gélidas e letais da morte. Samantha já havia explicado ao companheiro sobre o caso de antes uma dezena de vezes. Era difícil convencer alguém sobre a existência de monstros ou demônios, principalmente uma pessoa em sã consciência e em seu estado racional perfeito. Mas a jovem sabia o que havia visto, sabia e seu coração ainda disparava apenas em lembrar das criaturas que quase lhe haviam ceifado a vida não muito tempo atrás.
—Samantha, você tem que me ouvir, a cidade… ela – começou a dizer o sujeito ao volante do carro – Acredite, a cidade não está como você se lembra dela… as pessoas, elas não estão normais, elas não são mais elas mesmas… aquelas coisas, eu não sei dizer, não sei dizer se são ou não as pessoas que nós conhecíamos…
Os olhos da mulher estavam com olheiras roxas e avermelhados de tanto chorar. Ela sabia que o que quer que o policial Johnson tivesse para lhe dizer seria tão assustador quanto aquilo que ela mesma já havia experimentado aquela noite. Seu olhar estava fixo na estrada, no facho de luz estreito criado pelos faróis do carro em meio à neblina intensa que se formava naquela escuridão. Procurava afastar os pensamentos ruins da mente, mas mal conseguia olhar pela janela lateral do veículo com medo que uma das criaturas de antes estivesse os seguindo. Seus dentes batiam, tremendo de frio e medo.
Johnson não movia o olhar também, estava com o semblante sério, frio. Era estranho para a mulher que sempre o vira sorrindo e sendo gentil com todos. De alguma forma, Samantha se identificava com ele mais que com todos os outros na delegacia, pois ambos sempre procuravam ser atenciosos com todos, mesmo nos casos mais difíceis. Algumas vezes uma gentileza pode ser mais eficaz que a dureza, assim como muitas vezes a pena já se provou mais poderosa que a espada, não é verdade? – dizia sempre o sujeito. Mas não era mais aquele sujeito sentado no banco de estofado esfolado do velho carro, era um homem distante, um homem que mesmo sem saber como ela estava tinha vindo até ali apenas para procurar por ela e descobrir se ela estava bem, um homem que Samantha sentia orgulho em haver conhecido.
Qualquer que fosse a explicação sobre o estado da cidade, a policial não esperava por coisa boa, no entanto, criara coragem para perguntar ao amigo sobre o que ele estava falando. Por um momento fora como se o homem fosse pego em um sonho distante, pois levara um susto quando a mulher lhe tocara o ombro, fazendo o carro dançar na estrada. Pediu desculpas e explicou que sua mente ainda estava de alguma forma presa no terror que vivera pouco tempo antes. Apenas aquelas poucas palavras já eram o suficiente, Samantha sabia que não fora apenas ela que vira o inferno de perto. Johnson refletira por um momento, depois olhara para a amiga com o canto dos olhos e então começara a falar.
As palavras do sujeito atingiam a mente da mulher com imagens fantasmagóricas como se ela estivesse vivenciando cada detalhe. O policial explicara que logo ao receber a ligação da mesma pedindo para que fosse assumir seu turno, começara a se trocar e se preparar para sair, mesmo antes dela desligar o telefone. Dissera que sentira em sua garganta um nó que lhe prendera a respiração no mesmo instante, de alguma forma ele sentia que algo estava errado. Estavam prestes a entrar em um pesadelo de proporções magnânimas e Johnson de algum modo sabia disso. Chegara à delegacia menos de quinze minutos depois de desligar o telefone. Viera com o jipe que possuía levantando voo nas lombadas que encontrava nas ruas pelo caminho. Assim como esperava, ela havia saído em uma das viaturas que ficavam reservadas para emergências, deixando a outra na vaga ao lado da entrada. Assim que estacionara o jipe saltara do veículo e entrara na viatura, mudando-a de lugar, deixando-a estacionada na rua para o caso de precisar sair dali às pressas. Entrara no prédio e fora até o armorial, apanhara algumas outras armas e as colocara no veículo, da mesma forma como Samantha já havia feito antes. Voltara para dentro do prédio e se sentara naquela mesma cadeira de frente para a mesinha com o relógio digital sobre ela. Ficara imaginando o que teria acontecido, como a amiga estaria naquele momento? Samantha era impulsiva demais, talvez devesse ter esperado por ajuda.
O tempo passou, um minuto tornou-se dez, dez tornaram-se meia hora e por fim mais de uma hora havia se passado. O tempo de repente pareceu voar e mesmo que não tivesse sequer cochilado, quando menos percebera o relógio marcava vinte e três e trinta. O sujeito havia acabado de se levantar quando foi puxado de volta para a realidade pelo som de tiros do lado de fora do prédio. Não apenas um tiro, mas muitos.
Instintivamente empunhara sua arma e correra na direção da porta, mas antes mesmo que chegasse à saída, Hilton e O’Larry entraram correndo, suas armas também em punho. Hilton, que havia entrado por último, virara-se socando a porta. Ambos eram policiais da mesma delegacia, assim como Johnson e Samantha. Estavam com os olhos esbugalhados, assustados e respirando com dificuldade. Nem era preciso perguntar para saber que haviam corrido sem parar pelas ruas da cidade. Quando interrogados pelo policial de plantão os mesmos explicaram de uma forma que era quase impossível se acreditar. Segundo eles, as pessoas pelas ruas estavam se atacando. Atacavam-se e se mordiam com voracidade, era como se tentassem devorar umas as outras. Hilton havia sido mordido por um sujeito no bar onde estavam, tentara de todas as formas possíveis evitar o confronto, mas o sujeito que o atacara só parara após levar dois tiros. E o mais inacreditável era que diziam que o sujeito se levantara, mesmo após levar dois disparos no peito à queima-roupa. E segundo explicavam as ruas estavam tomadas por pessoas daquele jeito, mesmo com tiros estava sendo impossível pará-los.
Johnson mal acreditava no que estava ouvindo, mas era impossível questionar os dois com os fatos praticamente estampados em seus semblantes. Hilton sentou-se em uma cadeira, dizia ele estar com dores pelo corpo e sentia-se queimando por dentro, como se tivesse uma febre terrível. Também o local onde o vândalo o mordera ardia como se estivesse sendo marcado com um ferro em brasas. Os companheiros não sabiam o que fazer. O policial de plantão lembrou-se de Samantha e correu para o telefone, mas o celular da mulher não atendia, tudo que ele sabia era o último ponto de referência para onde ela se dirigira. Enquanto pensava no que fazer o policial Hilton lançou-se ao chão em espasmos epilépticos, O’Larry foi ao auxílio do mesmo, procurando impedir que este se ferisse. John não sabia o que fazer, se as ruas estivessem como ambos haviam explicado, ali era o lugar mais seguro que poderiam estar. Poucos instantes depois Hilton parou de se debater. O’Larry ajoelhado ao lado do sujeito baixou a cabeça e disse que era tarde demais, o amigo estava morto e sequer sabiam o que acontecera.
Johnson lembrou-se da mordida, teria sido a causa? Que tipo de doença se transmitiria assim, com uma mordida e o pior, um ser humano infectado transmitindo doença dessa forma era no mínimo sombrio e assustador, primitivo. Talvez, considerando o estado em que todos estavam pelas ruas, fosse algum tipo de raiva, mas como isso teria começado e como combater? Os gritos de O’Larry o trouxeram de seu mundo de pensamentos para o mundo real outra vez. Quando o mesmo se virou viu O’Larry caído no chão da recepção da delegacia com Hilton sobre ele, havia sangue por toda parte, eles pareciam estar lutando. Não, lutando não, Hilton atacava o amigo e O’Larry tentava se defender. Mas como? O outro não estava morto? Hilton não havia entrado em estado de óbito apenas há alguns minutos? Johnson empunhou a arma no momento exato, se tivesse demorado um segundo mais teria sido outra vítima. O policial que supostamente estava morto se virara e lançara-se contra ele com fúria, mas naquela distância Johnson jamais erraria um tiro. Em qualquer outra circunstância não atiraria em um companheiro, mas ao que parecia Hilton, que supostamente estava morto, havia ressuscitado e tinha acabado de matar O’Larry. Aquilo tudo era macabro demais. O disparo da arma colocou fim ao tumulto, um tiro bem entre os olhos fez Hilton desabar ao chão novamente. Ambos companheiros de Johnson estavam diante de si, caídos e mortos. O pesadelo que o policial temia estava realmente acontecendo.
—Isso… - começou a dizer Samantha tão assustada que respirava com dificuldade.
—Desculpe, mas não tive escolha, se não tivesse o feito seria eu a estar morto agora. Por favor, Sammy, sei que eram nossos amigos, mas foi a única saída – respondeu o motorista.
—Pelo que você diz, quero dizer, mortos que voltam à vida, se atacam, não reconhecem os próprios amigos… está dizendo que se transformaram em zumbis? – disse a mulher.
—É difícil de acreditar, eu sei, mas foi o que vi, algo assim, se é que podemos dizer, estão todos agindo como zumbis e estão aumentando cada vez mais. As ruas estão lotadas, são nosso próprio povo, Samantha, nossos próprios amigos, é terrível. Me pergunto se metade da cidade não tivesse viajado devido ao feriado… o que teria acontecido, como as coisas estariam…
—Depois do que vi mais cedo não é difícil acreditar no que diz, eu só queria uma resposta pra essas coisas, isso parece coisa de filme, não parece ser possível, mas está acontecendo…
—Deus está nos punindo, o apocalipse está acontecendo, os pecadores estão se revelando, estão sendo julgados e sentenciados – disse o rapaz com o suor escorrendo pela testa.
—Não, não é coisa de Deus. Deus nos daria opções, Ele não pode ser tão cruel e injusto. Isso é coisa dos homens, com certeza alguém começou isso, mas duvido que descobriremos quem e como aconteceu. Estou assustada, se não enviarem ajuda vamos todos morrer – disse a mulher verificando a trava e a munição da pistola que tinha em mãos, tremendo demais para conseguir averiguar – O que eu sei é que ainda somos policiais, ainda temos amigos que podem estar precisando de ajuda. Amigos, parentes, pessoas que amamos e outras que nem mesmo conhecemos, mas juramos proteger. Johnny deu sua vida para salvar a minha e não irei decepcioná-lo, vou lutar até o fim. Precisamos nos equipar e ver o que podemos fazer. Pare na casa de Jhenifer, ela mora logo na entrada da cidade, preciso me limpar e me trocar e com sorte ela deve estar lá ainda, hoje era folga dela.
—Está bem… Samantha, estou feliz por ter te encontrado com vida… principalmente depois de tudo que disse ter passado.
—Também estou feliz de te ver de novo, John, obrigada.
Enquanto continuavam pela estrada no carro de patrulha Johnson explicou ainda que para confirmar suas teorias, após atirar em Hilton o mesmo amarrara O’Larry em uma das cadeiras da delegacia. Segundo ele, a sorte estava realmente de seu lado naquela noite, pois menos de dois minutos depois de concluir os nós da corda O’Larry acordara da morte agressivo e violento, debatendo e grunhindo ruídos sem sentido, sem qualquer lembrança de quem fora ou qualquer traço de sua personalidade. O policial fechou os olhos quando disse que atirara no amigo naquele mesmo instante, amarrado naquela cadeira. Era preferível que ele morresse naquela cadeira que se o deixasse lá e de repente ele escapasse e viesse a atacar outros desavisados, não apenas lhes levando também à morte, mas transformando-os posteriormente em outra coisa daquelas.
Samantha colocou a mão no ombro do amigo, sabia que ele sentia-se fraco por não poder ajudar os dois companheiros, mas sabia também que não era sua culpa, ele fizera o que tinha de ser feito. Ela só esperava também ser forte o bastante para fazê-lo se chegasse a sua vez.
Menos de dez minutos depois Johnson estacionara em frente à casa da amiga da policial. Jhenifer era secretária na delegacia durante o dia e morava em um pequeno bairro localizado bem ao sul da cidade, quase na saída que levava para a floresta.
Estranhamente, desde que haviam adentrado a área urbana todo o lugar estava imerso na escuridão total. Era um black-out e naquela noite escura, sem lua nem estrelas no céu, apenas os faróis do velho carro iluminavam o caminho. Johnson estacionou o veículo em frente ao portão da casa de Jhenifer e manteve os faróis ligados e a chave na ignição, se precisassem sair dali rápido seria melhor que não precisasse dar partida novamente. Ao longe, pela luz dos faróis algumas figuras eram vistas caminhando, mas os ocupantes decidiram não gritar por elas, afinal, não sabiam se tratava-se de pessoas ou aquelas coisas que elas estavam se tornando. Samantha saíra do carro primeiro e dando a volta decidira ser a primeira a entrar na casa, Johnson cuidaria de sua retaguarda. Ambos apanharam as lanternas no porta-luvas e seguiram em meio à escuridão. O que dava ainda mais calafrios não era o fato de estar tudo em um completo breu e sim estar tudo no mais profundo silêncio. Naquele vazio de sons, a única coisa que cada um deles era capaz de ouvir eram as batidas do próprio coração.
Samantha passou pelo pequeno portão e avançou pelo caminho trabalhado com mármore e parou na porta da frente da casa da amiga. Tinha a lanterna na mão esquerda, a mesma mão que estava por baixo do pulso da mão direita, onde carregava uma das pistolas que Johnson lhe dera antes de saírem do carro. Afrouxando os dedos que seguravam a pistola a mulher os levou até a maçaneta da porta, que para sua surpresa estava destrancada. Jhenifer provavelmente não estava na casa – pensou a policial – a amiga não seria descuidada de ficar escondida dentro da residência em meio àquela escuridão com as portas abertas. Mas ainda que a outra não estivesse ali, ao menos ela poderia apanhar algumas roupas e se trocar, estava ferida e suja demais e felizmente ela e a amiga dividiam o mesmo número de figurino. Johnson, pouco atrás dela, apontava a lanterna em direção à rua, procurando por vestígios de qualquer pessoa por perto, mas aparentemente estavam sós.
—Sammy – disse ele – É melhor não nos demorarmos mais que o necessário. Quanto antes seguirmos para o centro melhor, se há grupos tentando resistir a esse problema eles estão na delegacia ou na prefeitura. Além disso, essa escuridão me deixa desconfortável. Não sei como explicar melhor, mas tenho a sensação de que uma daquelas coisas vai surgir do nada e saltar sobre mim a qualquer momento.
“Uma daquelas coisas vai surgir do nada e saltar sobre mim a qualquer momento”.
As palavras do amigo atingiram os ouvidos de Samantha como tiros em sua cabeça. Tudo que ela conseguira imaginar ao assimilar o medo do companheiro fora em ser novamente pega de surpresa por aqueles demônios enormes que confrontara na floresta. Sem pensar em mais nada a mulher abriu a porta e pediu que o outro ficasse ali de vigia. Mesmo na escuridão ela conhecia bem a residência e com a lanterna entraria e sairia rapidamente – explicou. Jhenifer não tinha armas em casa nem nada que pudesse ajudar, por isso Samantha apanharia as roupas que precisava e se a amiga estivesse ali poderia levá-la junto com eles.
Samantha adentrou a casa procurando por pistas de arrombamento. Não seria nenhuma surpresa se em meio aquele problema um ou outro marginal pensasse em se aproveitar da situação. Felizmente tudo parecia no lugar, ainda que a mulher só conseguisse enxergar com clareza nos lugares exatos onde o facho de luz da lanterna atingia. Sem perder tempo seguira direto para o quarto da amiga, sabia onde ela guardava tudo na casa e até mesmo era capaz de imaginar quais roupas apanharia para seguir em frente. Para sua surpresa Jhenifer continuava ali, provavelmente assombrada demais para fugir.
A morena estava sentada na margem da cama, próxima do criado-mudo com abajur de cor salmão. Tinha os cotovelos sobre os joelhos, as mãos com os dedos entrelaçados e sua face estava afundada entre os antebraços. Os cabelos longos e negros lhe caíam sobre as orelhas e pelas costas e ela parecia chorar baixinho. Samantha não se surpreendera, Jhenifer era mesmo o tipo de mulher medrosa, vivia caindo em pegadinhas no trabalho e ninguém se conformava em como uma mulher daquelas estava trabalhando em uma delegacia. Talvez fosse pelo fato de a pacata Little River ter um ênfase no sentido da palavra pacata ao qual referiam a si mesmos.
Sem pensar duas vezes a policial correu até a amiga e ajoelhou-se ao lado da mesma. Colocara a arma no chão e apontando a lanterna para a outra se aproximara mais, levantando o cabelo que lhe caía sobre a orelha e cobria seu rosto. E nesse momento o terror mostrou mais uma de suas faces brutais.
Jhenifer rosnou, literalmente, em um grito tão agudo que fizera a alma de Samantha gelar. Os olhos da amiga estavam completamente tomados de um branco profundo, fazendo parecer que nunca tiveram o outrora verde tão encantador que já possuíra. Os lábios vermelhos, sempre preenchidos com o batom característicos, estavam rachados e sangrando e parte de sua face estava envolta pelo vermelho que escorria dos ferimentos. A morena lançou-se sobre Samantha com fúria, segurando seus dois ombros com força e puxando-a de encontro a si. Sem ter o que fazer ou tempo para pensar, a mulher colocara a antebraço esquerdo abaixo do maxilar da outra, apertando seu pescoço e impedindo que ela avançasse mais. Era incrível a força de que Jhenifer dispunha, custava acreditar que fosse ela mesma. Em uma luta intensa Samantha caíra de costas no chão com a amiga sobre ela e com isso a lanterna escorregara de sua mão, caindo e indo rolar para debaixo da cama. Tudo que a policial conseguia pensar naquele frenesi eram as palavras de Johnson, de que se ela fosse mordida estaria tudo perdido. Sentindo o hálito quente da amiga em seu rosto e o sangue do rosto da mesma que escorria por seu pescoço, a mulher tateou com a mão livre pelo chão até encontrar a arma que havia deixado. Ao sentir o metal lhe tocar a pele com sua superfície gélida, em questão de segundos a mesma apontou para a cabeça da amiga e atirou. O disparo naquela distância explodira a cabeça da outra em pedaços ao mesmo tempo que lançara seu corpo alguns metros para longe. Samantha, por sua vez, perdera os sentidos, a explosão do tiro tão próxima de seu ouvidos a deixaram surda, também teria ficado cega por alguns momentos se já não estivesse na completa escuridão.
—Sammy! Samantha! Você está aí? O que aconteceu?! – gritou o amigo entrando no quarto.
Aproximando-se e iluminando o que podia com a lanterna John viu a mulher caída no chão envolta em uma poça de sangue enquanto a outra estava a um canto próxima de uma parede.
—Oh, Deus! Samantha, o que houve com você? Diga alguma coisa, não morra, por favor! – gritou o mesmo desesperado, aproximando-se e ajoelhando, tomando-a em seus braços – Por favor, não esteja ferida, não tenha sido mordida, por favor – repetia ele enquanto procurava por ferimentos no pescoço e outras partes do abdômen e tórax da mulher.
—Não… estou… ela não me mordeu… mas ela tinha sido infectada, eu não tive escolha – disse a policial com esforço, ainda lutando para recuperar os sentidos.
Segurando a mulher com um braço enlaçado em seu pescoço, o companheiro ajudou-a a se levantar. Certificando-se de que a mulher estava com a arma em sua mão, o sujeito lhe segurou a face pelo queixo, seu rosto iluminado pelo facho de luz da lanterna. Encarou-a nos olhos e esperou um breve momento até que percebeu a mesma a lhe encarar também, seus olhos castanhos mirando os dele mesmo.
—Precisamos sair daqui e rápido, a infecção já deve ter alcançado os moradores, vamos estar encrencados nessa escuridão, você me entende? – disse ele. Samantha apenas balançou a cabeça para cima e para baixo em um gesto de que compreendia, mas não disse nada.
Saindo do quarto, Johnson se esforçava para conseguir ajudar a amiga a andar ao mesmo tempo que empunhava a lanterna e a pistola. Ao tomarem o estreito corredor que levava da sala de estar para a porta da frente outro problema surgira no caminho. Quando Johnson apontara a lanterna na direção da porta três ou quatro “criaturas” adentravam a casa. Era visível não tratar-se de pessoas normais, pois estavam em frangalhos, tanto suas roupas quanto suas faces e partes de seus membros. Com certeza eram mais desavisados que haviam sido atacados por outras vítimas já transformadas. Enquanto apontava a lanterna com a mão esquerda – que por sinal estava enlaçada na cintura de Samantha, dificultando tudo – o policial atirou contra as criaturas, mas não tinha certeza se havia acertado alguma em meio à escuridão, pois a cada tiro o recuo fazia seu corpo balançar e consequentemente a luz da lanterna se movia em diferentes direções, fazendo a mira ficar cada vez menos precisa.
—A porta… da cozinha – disse Samantha enquanto se colocava em pé com suas próprias forças – vamos ter que sair por lá e vermos se conseguimos dar a volta na casa até o carro.
Os dois saíram a passos largos, o policial na frente apontando com a lanterna enquanto a mulher o seguia pela retaguarda. Ao saírem dois outros zumbis estavam a poucos metros no pequeno quintal dos fundos da casa da mulher. Assim que Johnson apontou a lanterna para eles Samantha tirou o corpo para o lado, em um ângulo em que o amigo não estivesse ameaçado e atirou duas vezes, dois tiros precisos nos crânios das criaturas.
—Ilumine o caminho e se algum deles aparecer eu atiro, vamos dar o fora daqui logo – disse ela com dificuldade, ainda se recuperando do incidente alguns minutos antes – felizmente parece que minha pontaria continua boa – sorriu.
Após saírem na rua ambos viram que a situação era bem mais caótica do que esperavam. Haviam criaturas por toda parte e o pior, os que estavam mais longe não podiam ser vistos, mesmo com a lanterna, apenas os mais próximos. Voltar ao carro de patrulha estava agora fora de cogitação dado o bando de inimigos entre eles. Vamos morrer – pensou Samantha.
—O que vamos fazer? – perguntou a mulher para o outro.
—Você conhece melhor essa região, nos guie por um caminho na direção do centro, vamos tentar encontrar outros ou um veículo. Se a situação não melhorar vamos precisar escapar da cidade, acredito que é o que todos estão pensando.
—Mas temos um compromisso, servir e proteger. Não acredito que estou dizendo isso – disse a mulher cerrando os punhos.
—Não poderemos ajudar ninguém se estivermos mortos e creio que é o que vai acontecer se ficarmos por aqui – continuou o policial enquanto atirava em um zumbi que se aproximava – se isso for um incidente isolado a ajuda vai demorar pra chegar e se for apenas um foco de uma epidemia maior, que veio de outras cidades, acredito que não teremos apoio de fora tão cedo.
Por um breve momento Samantha viu outra pessoa no policial Johnson. O sujeito de cabelos arrepiados parecia haver envelhecido, ou melhor, amadurecido dezenas de anos desde a última vez em que haviam se falado. Talvez o medo e aquela situação lhe tivessem ativado um gatilho que despertara adiantado o homem que ele um dia estivesse destinado a ser. Ademais, ele tinha razão em sua dedução – aquele problema estaria ocorrendo apenas ali naquela cidadezinha esquecida pelos políticos e por Deus ou haveria o mesmo acontecendo em outras? O problema com certeza não poderia ter começado naquele fim de mundo, então se a infecção e as criaturas que ela vira na floresta haviam vindo de fora, quantas outras cidades estariam encarando algo como eles naquele momento?
—Me dê a lanterna – disse a mulher, estendendo a mão para o companheiro – vamos sair logo desse lugar, você tem razão, se ficarmos aqui e morrermos nesse lugar nunca teremos nenhuma resposta e também não vamos poder ajudar ninguém. Vamos pegar um atalho e seguir em frente, se não encontrarmos outros no centro vamos dar o fora dessa cidade o quanto antes.
Johnson lhe passara a lanterna consentindo com um aceno de cabeça ao que a mulher havia acabado de dizer. Enfim, o policial sentira que o espírito de Samantha estava revigorado, da forma que deveria estar se fossem tentar sobreviver aquele caos. Ao mesmo instante ambos gelaram dos pés à cabeça quando uma luz muito forte os cegou. A luz parou bem diante deles ao mesmo tempo em que o som de uma derrapada parava com o cheiro de pneus queimando.
—Se estão vivos digam alguma coisa! – gritou uma voz – Iremos atirar em cinco segundos.
—Quem está aí?! – berrou Johnson. Uma voz diferente da primeira falou por detrás da luz “Eu disse que eram sobreviventes, zumbis não carregam lanternas, cara”. “Poderia estar presa em uma daquelas coisas, é preciso ser precavido” – respondeu a primeira voz novamente.
—Vocês estão bem? Há quantos aí com vocês? – disse Samantha com a visão voltando ao normal. O sujeito por trás da luz falou novamente.
—Vocês foram mordidos? Estamos indo para o centro ver se outras pessoas escaparam dessas coisas, se não estiverem mordidos podem vir conosco.
—Estamos bem – respondeu Johnson – estávamos na viatura, mas precisamos parar e os zumbis tomaram o lugar e não conseguimos voltar para ela.
—Tudo bem – respondeu um sujeito gordo de cabelos negros e lisos com os dentes de coelho salientes até quase saltarem para fora da boca, aproximando-se e estendendo a mão para o policial – eu e meus dois primos estamos indo para o centro. Todo mundo por aqui está perdido, acho que nossas famílias e amigos quase todos se foram, tivemos até que atirar em alguns deles, mas a força, cara, sem querer, entende? Venham conosco, vamos dar o fora desse lugar antes que eles nos alcancem. Não é seguro andar a pé por essas ruas.
Quando ambos deram a volta puderam constatar que a luz forte era dos faróis de um jipe sem capota muito velho, cuja cor era impossível de se definir naquela escuridão.
—Você é da polícia, cara? Que irado, agora vamos ficar bem! – disse o sujeito no volante, um adolescente magrelo e aparentemente muito alto, quase como um jogador de basquete, com cabelos negros longos e lisos como os que alguns músicos de bandas de rock usavam. Havia um terceiro sujeito no banco de trás, outro gordo, mas este loiro de olhos verdes e muitas sardas.
—Meu Deus, gata! – exclamou ele ao olhar para Samantha – O que foi que aconteceu com você? Esse machucado, você foi mordida? – perguntou apontando para a perna exposta da mulher na calça faltando toda uma barra.
—Muito pior que uma simples mordida – disse ela com cara de poucos amigos – Mas não estou infectada, veja – continuou, apontando para a enorme cicatriz na coxa suja de lama – havia um amigo comigo, ele me ajudou, está cauterizada, está vendo?
—Puxa, como fez para fechar esse corte? Que bom que não está possuída como os outros.
—Não vai querer saber – respondeu a mulher enquanto subia na traseira do jipe.
Tão logo subiram o veículo saiu a toda velocidade pelas ruas. O rapaz no volante dirigia como um loco, nunca diminuindo abaixo dos 120km/h, a não ser nas curvas que fazia sempre acima de 80. Era preciso segurar-se com força, pois mesmo nas retas, ao ver algum infectado bem diante dos faróis era preciso desviar de imediato e isso concedia diversos solavancos.
Ao saírem para a rodovia que ligava aquele bairro ao centro e também à uma das saídas de Little River, a iluminação revelara uma situação extremamente crítica. Centenas de pessoas haviam sido contaminadas pela infecção, haviam automóveis batidos por toda parte e um caos entre sobreviventes tentando fugir e as criaturas caminhando sem rumo. Naquele ritmo em pouco tempo aquilo tornar-se-ia uma pandemia, talvez em escalas fora do imaginável.
Tomando um desvio ao lado de uma ponte o rapaz adentrou novamente a área urbana da cidade e após pegar uma avenida reduziu a velocidade a 60km/h. Dissera ele que adiante dali, a apenas alguns quarteirões, estava a praça da igreja de Saint Louis, a principal capela de toda cidade, mas antes haveriam de passar defronte o teatro municipal e poderia ser que houvessem sobreviventes escondidos lá. Samantha e Johnson chegariam ao teatro, mas apenas os dois.
Ao atravessarem por um cruzamento cujo semáforo estava travado no sinal verde e não mais funcionava, uma caminhonete viera no sentido de cruz em altíssima velocidade e colidira com o jipe na parte frontal do lado do banco do passageiro fazendo-o rodopiar diversas vezes. Samantha e o policial com ela que estavam em pé segurando-se no apoio das ferragens na parte de trás do veículo foram imediatamente lançados para fora do mesmo, instantes antes do próprio capotar e voar para dentro de uma loja pela vitrine. A mulher imediatamente ajoelhou-se tentando recuperar a visão novamente, mas tudo estava embaçado demais. Nem a visão nem a audição pareciam funcionar direito. “Sammy!” – ouviu ela – “Você está aí?”. Era a voz de Johnson. A mulher gritou que sim, buscando no fundo de seus pulmões as forças para que alguma voz saísse. Quando finalmente conseguiu abrir os olhos viu o companheiro ao seu lado, tão ferido e sangrando quanto ela. O mesmo ajoelhou-se ao seu lado e colocou a mão esquerda em seu ombro. Estava ofegante e tão machucado que parecia um daqueles zumbis.
—Quebrou alguma coisa? Consegue se levantar? – perguntou ele.
A mulher não respondeu, apenas apoiou-se em um dos joelhos e forçou-se a tentar levantar. A dor de um milhão de farpas a atingiu na coxa, aquela mesma coxa exposta pela falta de uma das barras de sua calça. Quando se virou, em meio aos borrões que ainda ofuscavam parte de sua visão Samantha viu um estilhaço enorme de vidro enterrado em sua pele. Ao tocá-lo, a dor pareceu correr por cada célula de seu ser, aquilo tinha no mínimo dez centímetros sendo desses cinco centímetros cravados dentro de sua carne. Pensando que estava em choque e que a verdadeira dor viria dali alguns momentos quando seu sangue esfriasse e seu ritmo cardíaco voltasse ao normal a mulher agarrou o pedaço de vidro com o polegar e o indicador e puxou com toda força. Mesmo pensando que a dor posterior fosse maior o grito agudo da policial pareceu um uivo agonizante que ecoara nas quatro direções daquele cruzamento.
—Samantha! Samantha! Samantha! – gritava o policial ao seu lado, mas a mulher ao qual se dirigia nada ouvia. Era como se as palavras do sujeito viessem duplicadas milhões de vezes, como se cada fonema repicasse em todos os objetos e reverberasse nas paredes de todos os prédios. Johnson a chacoalhava pelos ombros, mas a jovem estava perdida em outro mundo, um mundo distante, um lugar acolhedor dentro de sua mente, onde seu psicológico tentava lhe proteger dos perigos do mundo real. Johnson olhando em volta decidira que não tinha mais tempo para acordar a mulher do choque em que se encontrava. Sem perder tempo afundou a arma que tinha nas mãos no coldre da cintura e passando uma das mãos pelas costas e a outra sob as coxas da amiga tomou Samantha nos braços. De todas as direções os zumbis estavam se aproximando, cada vez mais deles e cada vez mais rápidos. Em pé, com a mulher nos braços, o policial olhou na direção de onde o jipe batera após capotar, mas não vira nenhum dos outros ocupantes e o local já estava com mais de uma dúzia daquelas coisas a procurarem por alguém nos destroços. “Me perdoem” – pensou ele, girando o corpo e olhando na direção do teatro.
Felizmente – pensara, ele era mais rápido que aquelas criaturas e ainda pensava de forma racional. Ao aproximar-se da bilheteria na frente do grande prédio o sujeito constatara que tudo ali também já havia sido arrombado, muito provavelmente por outras pessoas em fuga. Haveria ali algum outro sobrevivente? Chutando as portas duplas com força o mesmo adentrou correndo com a mulher nos braços. Por sorte Johnson malhava todos os dias, fazia parte de seu cotidiano como policial e Samantha era uma mulher bem leve. Ao chegar na área da plateia, o sujeito deixou Samantha em uma das quinhentas cadeiras e voltou para a entrada, puxando duas mesas, algumas cadeiras, um armário e uma escrivaninha, bloqueando a porta pelo lado de dentro. Se tivesse alguma daquelas criaturas ali ele poderia enfrentá-las, a última coisa de que precisava naquele momento era que as centenas de monstros da rua adentrassem seu refúgio também. Quando voltava para o auditório o jovem deu-se de frente com outro perigo iminente. Haviam alguns zumbis aproximando-se de uma Samantha desacordada na mesma cadeira em que ele a havia deixado. Sacando da arma ainda há mais de dez metros o policial começou a atirar, três caíram atingidos por disparos certeiros na cabeça, os outros receberam disparos no peito ou nos ombros e continuavam a caminhar, aparentemente agora com mais fúria.
Antes que percebesse o som de mais disparos se unira ao do policial. Samantha acordara em meio ao tiroteio e sacara sua própria pistola, começando também a atirar nos zumbis que se aproximavam dela. Em poucos segundos todos os alvos estavam no chão.
—Sammy! – gritou o sujeito, aproximando-se e encarando sua face de perto, olhando em seus olhos procurando sinais de que ela estava bem.
—O que houve? Acho que subestimei a dor que estava sentindo e desmaiei. Quanto tempo eu fiquei desacordada? – perguntou ela.
—Apenas alguns minutos, mas a coisa está feia.
Ambos olharam cada um para um lado. Das portas laterais dezenas de zumbis invadiam o local. Muito mais inimigos do que eles tinham munição para derrubar.
—Temos que dar o fora daqui! – disse Samantha levantando-se.
—Não dá pra escapar pelas portas, bloqueei a porta da frente achando que só invadiriam por lá e está impossível andar pelas ruas. Me siga, atrás do palco há uma escadaria que leva para o alto do prédio, podemos subir e descer pela saída de incêndio na lateral depois.
—Parece que não temos escolha e nem tempo pra pensar – respondeu a mulher.
Em menos de um minuto a dupla de policiais estava subindo por uma escada de metal em caracol, os sons de suas botas se chocando contra o ferro escuro se perdendo no acústico dos bastidores enormes do teatro. Ao saírem no alto do prédio de três andares, Johnson empurrou um latão cheio d’água para a porta, deixando-os sós naquele enorme vazio.
—Acredito que eles não irão nos seguir aqui – disse a policial, olhando para o amigo.
—Realmente está bem tranquilo aqui em cima, pena que não se pode dizer o mesmo do restante. Estou tentando acreditar que encontraremos outros na delegacia ou prefeitura, mas algo em mim se força a negar isso. Não sei o que fazer.
A noite escura estava envolta pela névoa. Do alto do prédio Samantha e Johnson podiam ver o estado crítico em que a pacata cidade se encontrava. Ao longe os focos de incêndio eram muitos, vários lugares tomados pelas chamas. Nas ruas havia uma infinidade de pessoas, das quais não era possível distinguir os ainda humanos e os transformados em criaturas canibais assassinas. Eram diversos os pontos sem luz e o engavetamento de carros se fazia visível por toda parte. Ao que parecia, em poucas horas Little River havia mudado de uma cidade pacífica para um inferno de proporções além da imaginação.
—Eles tem intelecto limitado – continuou a mulher – aparentemente não sabem subir certos tipos de escadas, como essa que subimos agora, por isso nenhum veio para cá. De repente estou me perguntando várias coisas, mas acho que eles também não sabem nadar, embora eu não saiba se afogariam e também não devem conseguir definir armadilhas, aposto que iriam de encontro ao fogo ou a uma bomba, mesmo que a vissem. Acho também que não sentem dor, é como se seu sistema nervoso estivesse desligado, mesmo levando tiros de perto eles não se detém, não param, isso os torna extremamente perigosos.
—Você tem razão, não adianta perder o controle, precisamos pensar de forma racional. Vamos seguir em frente e se não encontrarmos ninguém vamos dar o fora. Apenas nós dois não podemos fazer muita diferença nesse caos.
—Olhe – disse a mulher aproximando-se da guarda do prédio – todos os imóveis dessa rua foram construídos bem próximos um do outro. Dá pra saltar de um pro outro com facilidade, se todos estiverem assim como esse pode ser mais seguro se avançarmos pelo alto, creio que com isso adiantaríamos uma boa distância até a prefeitura sem ter que encarar mais conflitos com as pessoas que foram contaminadas.
Johnson aproximou-se a analisou a distância e altura entre os prédios e concordou com a mulher. Verificou a própria arma e depois sua munição restante. Samantha fez o mesmo, ambos se encararam com a expressão desapontada de quem sabe que mal tinham munição para um novo confronto. Afastando-se da beirada o sujeito correu e pegou embalo e saltou para o prédio vizinho. A jovem fez um sinal de positivo para ele com o polegar e o seguiu da mesma forma. Aparentemente tinham razão sobre o alto dos prédios. Não haviam zumbis.
Os policiais repetiram o procedimento em mais de uma dúzia de prédios. Em alguns deles, o seguinte era mais alto e eles saltavam para a escadaria de incêndio ou na direção de alguma janela do mesmo, escalando como podiam depois. Se essa forma de se mover era mais segura, ao menos era possível afirmar que era extremamente cansativa. Por fim, após quase quarenta minutos de corrida por sobre prédios e saltos ao estilo tartarugas ninjas, os dois pararam na borda de um prédio de dois andares. Suas visões, no entanto, eram para o imóvel em frente, o grande prédio de dez andares da prefeitura. Assim como os demais locais, a frente do mesmo estava envolta em caos, haviam carros batidos por toda parte, cadáveres largados pelo chão em alguns pontos, provavelmente vítimas que ainda não haviam se transformado e alguns pequenos focos de incêndio. Haviam vários corpos mutilados e entre eles diversos policiais. Armas eram vistas em alguns lugares e os dois se perguntaram se teria munição em algumas delas.
Mesmo sabendo dos riscos, ambos desceram pela escadaria de incêndio ao lado do prédio em que se encontravam e seguiram para o destino. Antes que conseguissem chegar as portas do local, no entanto, suas atenções se voltaram para as sirenes de um carro de polícia que descia pela rua em grande velocidade. Ironicamente, para piorar a situação, depois de tudo que ambos haviam passado para chegar até ali, o maldito carro viera diretamente para cima deles na calçada onde estavam. Johnson empurrou Samantha que foi lançada alguns metros, caindo no asfalto sujo, ralando o braço e o ombro. As coisas parecem que só melhoram – pensou ela, enquanto se esforçava para levantar. O policial, por outro lado, mal tivera tempo de sair da frente do carro desgovernado. Havia sido atingido em cheio pela lateral do veículo e estava caído de costas perto da porta de uma loja em ruínas, toda depredada.
Quando Samantha ouviu o barulho de tiros levantou-se rapidamente, fora como se dentro dela um botão se ativasse. Johnson estava ainda deitado, mas com a arma em punhos e atirando em vários zumbis que vinham de uma das esquinas poucos metros longe. O que ele não via era que do outro lado, pela outra esquina, outra dezena de zumbis se aproximava, provavelmente atraídos pelo som dos disparos. Correndo para onde o amigo se encontrava a mulher passou a atirar nos monstros que vinham da outra extremidade. Era mais do que óbvio que ficariam sem munição e à mercê das criaturas antes que derrubassem metade do que viam.
Aproximando-se do companheiro a mulher ajudou-o a levantar, parecia que o mesmo havia quebrado o pé ou o tornozelo, mas aos gemidos ainda apoiava-se em uma das pernas. Ambos precisavam sair dali, descer do prédio os deixara expostos novamente e praticamente agora o que ainda tinham de munição tinha ido por água abaixo. No exato momento em que o amigo se levantara em pé a mulher fora surpreendida pela ação que sucedera. Cuidado! – gritara ele. Nem houvera tempo para qualquer reação, tudo ocorrera em poucos segundos. Ao ouvir as palavras do outro policial a mulher percebera um zumbi em suas costas, poucos centímetros atrás de seu pescoço. Aquela sensação horrível de ter o hálito pútrido da criatura quase em sua pele lhe fez embrulhar o estômago. Johnson quase a abraçou, passando a mão direto pela lateral de sua cabeça e segurando o monstro pelo pescoço. No alvoroço que se sucedeu Samantha lutou contra o abraço da criatura que tentava agarrá-la e afastando-se pouco, empunhou a arma e atirou, o que se não fosse o último disparo, provavelmente deveria ser o penúltimo.
A criatura caiu com parte da cabeça faltando e a mulher estendeu o braço para o amigo que se segurou nela, apoiando-se em seu ombro. Os dois saíram a passos largos, uma vez que o sujeito não conseguiria correr. Aos poucos a rua se infestava com as criaturas que surgiam das sombras. Samantha seguia em direção às portas duplas da entrada da prefeitura, a poeira e a fumaça intensas no ar inundando seus pulmões, dificultando sua respiração e ofuscando sua visão. Quando estavam já perto da entrada o som de um disparo zuniu pelo ar. Em seguida outro. E outro, e outro. A policial olhou para trás assustada, os disparos não eram de pistola ou qualquer arma pequena, era com certeza um rifle de precisão extremamente calibrado. Para a surpresa da mulher os zumbis estavam aos poucos caindo, um a um.
—Entrem logo! – berrou alguém que Samantha não conseguia ver onde estava – Se não estão infectados é bom não ficarem aí fora, entrem se quiserem viver!
Não foi preciso pedir duas vezes. A porta estava destrancada e assim que a jovem adentrou levando o amigo nos ombros que percebeu tudo deserto. O salão de entrada da prefeitura não tinha ninguém, mas haviam sinais de que outras pessoas tinham passado por ali. Sofás, cadeiras e escrivaninhas estavam deitadas em posições estratégicas como barricadas e havia sangue por toda parte. Com certeza um grupo bem armado já estivera ali e usara a entrada para se proteger, fazendo do local sua própria trincheira improvisada. Samantha chutou um sofá de dois lugares e deixou o amigo sentado no mesmo e saiu a procura de armas ou munição deixadas para trás no caso de os mesmos de antes haverem feito uma fuga às pressas, mas infelizmente não achara nada. Cansada, voltara para junto do amigo, cuja expressão era a de alguém que não aguentava mais aquele situação. Sentando-se ao lado do rapaz, a policial suspirou.
—Alguém nos ajudou – disse ela – tinha alguém atirando nos zumbis enquanto entramos. Acredito que hajam outros sobreviventes dessa merda toda, devem estar escondidos em cima, nos andares superiores. Não vi de onde vinham os tiros que derrubavam os zumbis para nos dar cobertura, então suspeito que estavam atirando de alguma janela no alto.
—Vamos subir então? – respondeu o outro, usando uma pergunta – Pelo que vi lá fora, não vai ser fácil encontrar um carro funcionando. Sabe, não quero ser pessimista, mas acho que a cidade está condenada, se os outros bairros estiverem como o centro, está tudo perdido.
—Acho que não temos escolha. Nossa munição se foi e não achei nada por aqui. Sair não está nos melhores planos, como já vimos. Acho que não temos escolha a não ser irmos procurar por outros que tenham escapado. Mesmo assim eu me pergunto se nos andares superiores não terão outras daquelas criaturas, todo cuidado é pouco…
Samantha começara a ponderar sobre tudo que acontecera e se lembrara de seu pai e seu irmão. Em meio ao caos que se transformara aquela noite, a jovem esquecera-se de que talvez os dois ainda estivessem em casa. A terrível possibilidade de que tivessem se tornado mais daquelas coisas quais ela mesma já havia matado tantos naquela noite por um momento lhe assombrara a mente e seus olhos se encheram de lágrimas. Mas o que ela poderia fazer àquela altura dos acontecimentos? A casa onde morava era muito longe do local onde estava e nem mesmo um veículo para fugirem dali os mesmos haviam encontrado. Como poderia se perdoar por fugir e deixá-los para trás, quando, em sua mente, lhe ocorrera que os dois provavelmente deveriam estar lhe procurando? E o que fazer com Johnson, que fora em seu auxílio e se ferira enquanto lhe ajudava? E Johnny, teria ele sobrevivido depois do acidente após separarem-se na floresta. Aos poucos o ar começou a desaparecer, a deixá-la sozinha naquele mundo que ficava cada vez menor, mais apertado, mais sufocante. De repente, Samantha se sentiu pequena, uma menininha fraca e indefesa e o pior, incapaz de proteger os outros. Era como se pudesse ouvir todos aqueles zumbis ao seu redor gritando “Você falhou, Samantha!”.
Um estrondo com o impacto de um terremoto fez Samantha pular no sofá onde estava sentada. Outro estrondo. Parecia mesmo um terremoto. Outro e outro e a mulher levantou-se com os olhos arregalados. O que poderia estar fazendo o chão tremer daquela forma? Não apenas o chão, mas as paredes, as janelas, tudo. Johnson parecia não sentir o que estava acontecendo, não se movia. Os olhos do sujeito estavam fechados e ele não expressava nada. Teria morrido – pensou Samantha. Não. Sem pensar a policial agarrou-se ao amigo procurando levantá-lo. Passou um dos braços do mesmo por seu pescoço e com esforço ergueu o homem que era maior e mais pesado que ela. Os estrondos continuavam e uma parede onde estavam ostentados os quadros com os doze prefeitos que já haviam governado aquela cidade começou a trincar-se, os quadros caindo ao chão. Ao mesmo tempo Samantha se equilibrava procurando levantar-se do sofá com o amigo nos braços.
—Eu sabia que estavam aqui! – gritou um sujeito com traje de soldado que surgira correndo por uma escadaria que levava ao primeiro andar. O mesmo aproximou-se de Samantha e olhou para o companheiro da mesma, seus olhos se arregalaram no mesmo instante – Tome cuidado, ele foi mordido! Tem que se afastar dele!
Os olhos da jovem e os olhos de Johnson se encararam pela última vez. Por uma fração de segundos ela foi capaz de ver a mordida. Uma mordida no antebraço, próximo da mão que ele usara para afastar o morto-vivo que a atacara há apenas alguns minutos. O problema agora era que nesse momento Johnson não estava mais ali, não o sujeito que Samantha conhecera. O que ela tinha em seus braços era um monstro que tomara o lugar do companheiro. A mulher viu a boca do ser se abrir tanto quanto jamais imaginara e lançar-se carregada de saliva e sangue na direção de seu pescoço. Quem diria que o mesmo sujeito que a salvara de situação semelhante apenas alguns momentos atrás agora a atacava da mesma forma? Outro estrondo derrubara a mulher de joelhos com o zumbi agarrado ao seu pescoço. Parecia o fim.
A bota do soldado passou próxima da cabeça da policial com a mesma velocidade de um tiro. O zumbi que a segurava voou pelo ar e caiu de volta no mesmo sofá que ela havia virado para ambos descansarem. O soldado passou pela mulher que se levantava e sacou a pistola do coldre na cintura. Quando o mesmo ia já puxar o gatilho Samantha colocou uma das mãos sobre o cano. O mesmo virou-se para o lado para poder encará-la e viu as lágrimas escorrendo por sua face. Samantha olhava com pena para o amigo transformado.
—Eu termino isso – disse ela e apontou sua própria arma para o sujeito que se levantava no sofá. Por aquele breve segundo que parecia demorar uma eternidade em seus pensamentos, Samantha podia jurar que por trás dos olhos vazios e sem alma da criatura, o policial Johnson a observava – Me perdoe, John e obrigado por tudo – concluiu enquanto puxava o gatinho da Beretta que trazia. Era o último tiro que lhe restava, o tiro que levara Johnson desse mundo.
—Me siga. Os outros estão reunidos na parte dos fundos do estacionamento desse prédio, precisamos sair daqui, esse local já está comprometido.
—Quem são vocês? – indagou a mulher – Nunca o vi por aqui antes e não temos grupos militares privados na cidade, como chegaram até aqui, quem os chamou e o que fazem?
O sujeito segurou a metralhadora que carregava com mais força. Olhou para o lado, como se alguém mais estivesse ali com eles e por fim encarou-a de volta.
—Que importa? Quer viver? Venha comigo, ou pode ficar aqui e morrer, salvar sua vida não é minha prioridade e nem parte da minha missão.
Samantha engoliu em seco o palavrão e os desaforos que se formaram em sua garganta. Ela estava sem armamento, sem munição e sozinha. Por hora, não havia nada que pudesse fazer senão concordar com o que o sujeito diante de si dizia. Seus lábios já se moviam para dizer que aceitaria a ajuda quando a parede atrás de si explodiu lançando estilhaços de concreto por toda parte. O impacto fez Samantha ser lançada de encontro ao soldado que caiu de costas no chão com ela sobre ele. Enquanto o sujeito olhava por sobre o ombro da mulher a mesma virou a face para trás, suas bochechas quase se colando.
Em meio à poeira e pedaços de pedra e metal da parede algo podia ser visto do lado de fora do prédio. A silhueta de um homem que parecia ter mais de três metros de altura.